Sem Ursos (2022)

O homem com uma câmera

título original (ano)
Khers Nist (2022)
país
Irã
gênero
Drama
duração
106 minutos
direção
Jafar Panahi
elenco
Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobasheri, Bakhtiyar Panjeei, Mina Kavani, Narges Delaram, Reza Heydari, Javad Siyahi, Yousef Souleymani, Amir Davari, Darya Alei, Rahim Abbasi
visto em
Cinemas

A sinopse oficial apresenta Sem Ursos como uma obra sobre “duas histórias de amor paralelas” enfrentando “obstáculos inevitáveis, as forças da superstição e as mecânicas do poder”. Talvez estes elementos estejam presentes, de fato, ao longo da obra. No entanto, estão distantes de constituir o foco do diretor Jafar Panahi, seja como tema ou como discurso. Os ganchos amorosos devem ter se tornado a saída mais fácil aos distribuidores do mundo inteiro para uma obra que investiga, em primeiro lugar, os poderes e os perigos da imagem.

Para tal, o cineasta parte de sua condição real no Irã. Condenado pelo governo, e libertado em prisão domiciliar, ele foi proibido de deixar o país e de filmar, em virtude de suas obras questionadoras à política local. Isso não o impediu de realizar projetos clandestinos, explorando criativamente a restrição de movimentos, a exemplo de Isto Não É um Filme (2011), Cortinas Fechadas (2013), Táxi Teerã (2015) e Três Faces (2018). Ironicamente, cerceado e impedido de exercer as atividades artísticas, realizou algumas de suas obras mais potentes e críticas aos seus algozes.

Agora, pela primeira vez, Panahi se coloca em cena na posição de estrangeiro dentro do próprio país. O diretor vinha representando o povo iraniano e a classe artística em suas iniciativas recentes, mas decide estabelecer um confronto de classes, gêneros e regiões. Na nova trama, ele se muda temporariamente para um pequeno vilarejo na fronteira com a Turquia, pois sua equipe está filmando um novo longa-metragem, fictício, no país vizinho. Assim, sente-se próximo da equipe, embora dirija as cenas pelo computador.

No entanto, o diretor possui plena consciência de representar uma elite financeira e cultural. Ele provoca um misto de admiração e repúdio no local pouco acostumado a turistas. Pelo carro luxuoso, por vir do Teerã e constituir um nome reconhecido nacionalmente, recebe um tratamento de criador privilegiado e excêntrico. Tenta impor sua visão de mundo cosmopolita, apenas para compreender o peso das tradições e do conservadorismo vigente no campo. Sua riqueza, seu conhecimento e a visão progressista dos relacionamentos provocam uma mistura de sedução e ameaça ao povo fechado sobre si próprio.

Panahi realiza um de seus filmes mais sombrios, e também mais fortes de toda a fase de confinamento. […] Sem Ursos oferece uma excelente reflexão acerca da censura, sem nomeá-la.

Tal confronto se traduz num discurso acerca da responsabilidade ética das imagens. Duas histórias correm em paralelo: em primeiro plano, a ficção sobre a vida de Panahi, habitando o vilarejo. Em segundo plano, a ficção-dentro-da-ficção, a respeito de um casal turco que busca passaportes falsos para viver na Europa. Em ambos os casos, a imagem acentua tensões políticas e sociais, por apreender e representar o real. Para a estadia na pequena comunidade, há o fato de que as fotografias tiradas ao acaso pelo cineasta possam ter testemunhado a aproximação secreta entre uma garota e o rapaz por quem está apaixonada. Como ela foi prometida a um terceiro, o triângulo pode “terminar em sangue”, conforme repetem os diálogos. 

A ficção interna também dialoga com a impressão de realidade. Nela, o casal turco estaria interpretando uma versão de si mesmos. A procura por documentos falsos corresponderia a um esforço real de ambos para deixarem a opressão do país. No entanto, o posicionamento da câmera, as coreografias intricadas pelas ruas e a exigência aos protagonistas de expressarem certas emoções se aproxima de ficção convencional. Eles se revoltam: por que deveriam sublinhar algum comportamento específico, se visam transmitir suas vidas reais? Os dois se encontram a um passo de desistir do filme, que parece se impor a eles e modificá-los, ao invés de se condicionar aos fatos existentes. Pode o cinema se intrometer nos dilemas verídicos de seus intérpretes? Que responsabilidade teria, caso os colocasse em perigo para suprir as necessidades da filmagem?

A conexão entre dos dois estilos e linguagem provoca uma fricção fascinante. Na porção de aparência documental, Panahi investe em planos fixos, longos, nos quais o cineasta observa os habitantes pela janela, ou recebe-os dentro da casa alugada. O aspecto contemplativo intervém pouco, evitando responder a perguntas fundamentais (ele teria realmente tirado a foto dos amantes?). Na porção mais claramente fictícia, a câmera efetua coreografias rebuscadas, em plano-sequência, alternando entre diferentes personagens, ora se movimentando pela rua, ora se focando em personagens ou objetos. 

O diretor cria um alter-ego muito mais preciosista e virtuoso do que ele próprio, como se a liberdade de filmar em outro país permitisse, igualmente, uma câmera mais despojada, revelando-se orgulhosamente nas ruas, e orquestrando o mundo ao redor. Enquanto a primeira metade aposta na estética do comedimento, para representar a opressão e a ausência de controle, a segunda metade transmite uma vontade até excessiva de determinar ações e dinâmicas. Panahi opõe duas versões opostas de mise en scène: a direção que ajusta sua câmera ao acaso do mundo, e aquela que ajusta o mundo às vontades da câmera.

Em ambos os casos, a vontade de fazer cinema e captar imagens com finalidade artística se converte num calvário aos criadores e aos retratados. Mais do que empecilhos práticos e de produção, eles terminam por colocar em risco as pessoas filmadas — ambas as tramas se encaminham à tragédia amarga. Seja a imagem como prova documental (no vilarejo) ou a imagem enquanto mensagem política (na Turquia), o cinema se transforma em crime. O autor realiza desta maneira um de seus filmes mais sombrios, e também mais fortes de toda a fase de confinamento. Ao invés de imaginar a vida que poderá ter num futuro libertário, prefere se confrontar ao desgaste presente da criminalização da arte.

Por isso, Sem Ursos oferece uma excelente reflexão acerca da censura, sem nomeá-la, nem citar de maneira explícita a prisão de Panahi. O roteiro elabora um encontro vertiginoso entre ficção e documentário, na qual um registro invade, deturpa e modifica o seguinte. Nas duas vertentes paralelas, Panahi-personagem perde o domínio e suas criações, que voltam para assombrá-lo. As imagens adquirem vida, prejudicam as pessoas filmadas, ou recebem interpretações muito distintas daquelas concebidas por seu criador. O julgamento do turista pelos aldeões, frente a uma câmera, alude diretamente ao processo de que o cineasta foi vítima, também condicionado a questões religiosas e morais.

Por isso, a fuga final soa como uma espécie de penitência ao criador que pode se deslocar, apesar de não ter realmente para onde ir e ser acolhido. O deslocamento a dois passos da fronteira durante a madrugada, o recuo simbólico ao perceber que estaria sobre a linha da Turquia, e a presença de “pó de outra cidade” no pneu do carro aludem ao estado de perpétua perseguição e paranoia instaurado contra pensadores que ousam questionar as convenções. Os ursos do título, que nunca existem de fato, refletem este medo infantil em relação à diferença e ao desconhecido, percebidos como elemento disruptivo. 

Panahi discute a consequência fatal de uma fotografia que nunca aparece; o peso de filmar uma fuga jamais concretizada; o receio de atravessar uma linha invisível; o pavor de avistar ursos inexistentes. Desta forma, dialoga com a vigilância perene e incorpórea dos indivíduos que assumiram para si o papel de juízes, policiais e vigias, reproduzindo os olhares julgadores do regime vingativo. O diretor pode se mudar a outra cidade, pode filmar à distância, mas jamais ficará em paz enquanto estiver sob regras injustas. Ironicamente, efetua uma obra livre sobre a ausência de liberdade, um olhar profano e questionador à impossibilidade de questionar. No final, rodando a esmo pela estrada, parece tão preso quanto estaria no cárcere.

Sem Ursos (2022)
9
Nota 9/10

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