A Menina Silenciosa parte de um cenário de violências. A pequena Cáit (Catherine Clinch) cresce num tradicional lar cristão, cercada por irmãos, e negligenciada pelos pais. A mãe nunca presta atenção na menina tímida, porque precisa cuidar das garotas mais travessas. O pai não esconde o desprezo pelas filhas mulheres, que representam, aos seus olhos, mais trabalho para alimentá-las. As irmãs conversam, brincam, ignorando Cáit. A heroína inicia sua jornada num cenário de invisibilidade, desprovida de afeto e de cuidados básicos.
É evidente que existem agressões concretas, sugeridas por diálogos e símbolos discretos. Compreende-se que o pai bruto já teve acessos explosivos dentro do lar. Descobrimos o caráter nocivo daquela família quando a menina recebe uma informação banal de terceiros, e replica: “Isso será um segredo entre nós?”. Já o casal formado por Eibhlín (Carrie Crowley) e Seán (Andrew Bennett) também possui suas dores — se um ninho está muito cheio, o outro se mostra vazio. Há um quarto infantil, desocupado, com roupas para um menino pequeno no andar de cima. Quando recebem Cáit em sua casa, durante o término de uma nova gravidez da mãe, Seán mal consegue olhar a pequena nos olhos.
O drama impressiona pela sensibilidade ao lidar com a rejeição e o luto. O cineasta Colm Bairéad adota precauções éticas e estéticas fundamentais para evitar a exploração da dor destas figuras com a finalidade de divertir o público. Ele dispensa, portanto, o sensacionalismo e a chantagem emocional. O público nunca será convidado a chorar, nem receberá uma grande cena com a função de válvula de escape (o discurso inspirador, o pedido de desculpas, o personagem que irrompe em lágrimas, etc.). Aqui, a emotividade fica presa no rosto dos atores, revelando-se em pequenos gestos cotidianos.
O drama impressiona pela sensibilidade ao lidar com a rejeição e o luto. O autor se concentra naquelas únicas semanas em que a menina sem amor encontrou adultos tristes, com muito amor para dar.
Logo, alguns dias após a chegada da menina no lar desconhecido, Seán passa longos minutos sem conversar com ela, porém lhe deixa uma bolacha recheada sobre o balcão quando sai. Eibhlín dá boa noite à hóspede e, durante a noite, faz uma visita de alguns segundos ao quarto, para verificar se tudo corre bem. Em meio a esta comunidade árida, os carinhos mínimos soam como um ato grandioso. Cáit devolve a atenção à sua maneira, oferecendo-se tacitamente para limpar o galpão dos bois junto ao homem solitário.
Uma menina sem pais efetivos encontra o casal amoroso; enquanto a dupla em luto encontra uma filha simbólica. The Quiet Girl (título internacional) poderia se encerrar por aí, na reparação das feridas através do carinho providencial. Ora, neste projeto, o arranjo não parte de benevolências, nem de altruísmo. Caít foi abandonada pelos pais biológicos na casa desta prima distante. “A mãe disse que você pode ficar comigo o tempo que quiser”, sublinha a menina, num dos raros diálogos da protagonista. O casal mais velho tampouco está pronto para receber uma criança na mesma idade do falecido. Por isso, há tanto incômodo quanto gentileza em cada cena.
A diretora de fotografia Kate McCullough segue este pudor respeitoso, porém jamais envergonhado. A dor pela ausência do filho será representada pela imagem do pai de costas, no quarto do falecido, em plano distante. Instantes propícios às emoções mais fortes são filmados em planos abertos, evitando os close-ups, ou pela nuca dos personagens. A ternura será representada em gestos, em oposição a verbalizada ou explicada. A rejeição social a Cáit se transmite tanto pela atuação introvertida da menina quanto pelos planos em grande angular, tornando-a ainda menor em meio à natureza (ou mesmo dentro do carro — vide a imagem em destaque acima).
Em paralelo, as luzes são frias, apesar dos dias ensolarados; e os ambientes se assemelham a caixões vazios, de pouca música ou ruído ao redor. O desconforto se materializa na assimetria entre os amplos espaços e as minúsculas expressões, ou entre a violência sugerida e a gentileza dos gestos concretos de Eibhlín e Seán em relação a Cáit. Bairéad sabe sugerir muito mais do que mostrar, deixando ao público a tarefa de completar as intenções por si próprio.
As apreensões iniciais logo se dissipam. As figuras do pai tirânico demais, da anfitriã atenciosa em excesso, do anfitrião ausente, se acentuam com o caminhar da narrativa. O maniqueísmo é descartado em prol do retrato de uma Irlanda tradicional, embrutecida, pouco amistosa. A estrutura se assemelha ao “filme de férias”, marcado pelo deslocamento geográfico forçado, quando jovens experimentam uma vivência nova e potente, sem ainda perceberem o papel transformador destas semanas para o resto de suas vidas.
No entanto, os criadores se negam a abraçar tanto a perspectiva turística da Irlanda quanto o interesse pitoresco por um modo de vida rural, diferente daquele da maioria dos espectadores. O cineasta aborda a linguagem e os costumes com a seriedade de quem os conhece bem, mas não deseja sacralizá-los, nem atacá-los. Apenas constata o peso das pressões patriarcais, machistas e religiosas numa menina de forte sensibilidade, reprimida devido ao instinto de sobrevivência. Cáit interessa tanto por tudo aquilo que faz, quanto pelas ações que claramente gostaria de fazer, porém, se priva.
Por fim, esta narrativa de castrações e restrições poderia gerar traumas ou disfunções sociais graves. O autor, por sua vez, prefere se concentrar naquelas únicas semanas em que a menina sem amor encontrou adultos tristes, com muito amor para dar. Juntos, viveram pequenos instantes de comunhão alheios aos olhares de todos — menos aqueles do espectador. Somos os únicos cúmplices de uma ínfima magia cotidiana, espécie de alento num mundo hostil.
Aqui, tanto a alegria quanto a tristeza ficam presos na garganta, resultando na belíssima cena de conclusão, único instante em que a câmera ousa se aproximar da emoção, ainda que com a devida ambiguidade entre a realidade e o desejo (vide a palavra final, repetida pela menina). O diretor se mostra otimista, porém nada ingênuo. Ele planta sementes para um processo de autonomia que, caso venha a germinar, acontecerá longe das telas. Resta ao espectador o trabalho de elaboração a partir de tantos vícios e virtudes condicionados ao peso das obrigações.