Centro Ilusão (2024)

Música é afeto

título original (ano)
Centro Ilusão (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
85 minutos
direção
Pedro Diógenes
elenco
Brunu Kunk, Fernando Catatau, Jaene Mariá, Démick Lopes, Di Ferreira, Adna Oliveira
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Centro Ilusão começa e termina com um número musical. Ao olhar para a cidade, a imagem compara os fios elétricos a uma partitura e, em seguida, ao braço de um violão. Os dois protagonistas, ambos músicos, comunicam-se com seus familiares através de canções: Kaio (Brunu Kunk) faz um dueto com a avó, enquanto Tuca (Fernando Catatau) toca piano para a mãe cantar. O maior gesto de altruísmo provém da música, no caso, a venda do instrumento querido para custear os sonhos alheios. O mesmo vale para a prova de amizade, quando se oferece o início de uma canção para o outro continuá-la.

O roteiro demonstra uma economia narrativa exemplar. A ação inteira se desenvolve ao longo de um único dia, quando os heróis participam de um disputado concurso musical em Fortaleza. Para eles, trata-se não apenas de fama e reconhecimento, mas da oportunidade de (enfim) ganharem algum dinheiro com seu trabalho. Tanto o garoto, dando seus primeiros passos na carreira profissional, quanto o homem de 50 anos, pensando em interrompê-la, sofrem para viver de arte. 

Por isso, a vocação representa para os dois um deleite e um calvário, uma bênção e uma maldição. Não conseguem se manter às custas de seu talento, mas tampouco se veem desempenhando qualquer outra tarefa. Remetem a dois Sísifos urbanos, do tipo que tenta, tenta, se esforça e fracassa. Entretanto, no dia seguinte, lá estão eles de novo, compondo, tocando, se apresentando, comprando cordas novas. O sonho se renova diariamente — esta é a triste poesia tão bem captada pelo diretor Pedro Diógenes. Não é difícil enxergar Tuca e Kaio como primos próximos do Renato de A Filha do Palhaço (interpretado por Démick Lopes), outro artista simultaneamente encantado e desencantado com a carreira.

Pedro Diógenes ama os heróis tão admiráveis quanto tristes (ou, talvez, porque são tristes).  Entre os dois protagonistas, surge uma relação simbiótica, magnética: Kaio nunca deixa Tuca de fato, até o final.

A este propósito, as produções da Marrevolto Filmes se desenvolvem de maneira entrelaçada, homogênea, como se fizessem parte de um único movimento criativo — são tijolos de uma casa só. Compartilham entre si não apenas diversos atores e profissionais (diretores de fotografia, montadores, etc.), mas também motivos narrativos semelhantes (os vendedores de sapatos, assim como em Quando Eu Me Encontrar; o retorno de Pajeú, do filme homônimo de Diógenes; a desolação urbana tão propícia à Última Cidade). Os personagens destes filmes poderiam se cruzar, por acaso, pelo centro de Fortaleza. 

Neste projeto, a música se torna alvo de afetos múltiplos — não apenas dos personagens uns com os outros, mas do diretor e dos demais criadores com as imagens, os sons, as cores, a luz. A primeira apresentação de Tuca ocorre diante de um deslumbrante cenário colorido, enquanto uma luz impecável ilumina seu rosto e corpo (vide imagem em destaque abaixo). Por este cuidado, apenas, nota-se o investimento emocional dos criadores com seu objeto de estudo. Trata-se de artistas apaixonados, fazendo cinema independente, enquanto filmam outras figuras apaixonadas, independentes, espécie de alter-egos da ficção. Pedro Diógenes ama os heróis tão admiráveis quanto tristes (ou, talvez, porque são tristes).  

Entre os dois protagonistas, surge uma relação simbiótica, magnética: Kaio admira o cantor desde a cena inicial (destaque para o belo zoom-in no rosto embasbacado do garoto). A partir deste momento, nunca se deixam de fato, até o final da trama. A curta separação é superada pela montagem paralela, insistindo em reaproximá-los. Tornam-se pai e filho simbólicos (ambos carecem de figuras paternas em suas vidas), ou então mentor e pupilo, na forma de duas pontas que tendem a se atar (a música de ontem e aquela de amanhã). 

Ao mesmo tempo, formam uma dupla clássica, pois complementar: o rapaz expressivo, alegre e falante, contra o homem taciturno e rabugento. O menino transborda de cores e espontaneidades, já o músico experiente se veste de preto, e pensa muitas vezes antes de falar. Pode-se considerá-los igualmente sidekicks numa dupla dinâmica, e ainda, duas metades de um buddy movie. Aqui, amor e amizade se fundem num conceito único da empatia. Depois de criar um álbum inteiro para a sua amada ex-parceira (ela também, uma artista em dificuldade financeira), Tuca compõe para o amigo recém-conhecido. O aspecto homoafetivo, no sentido estrito do termo, domina a trama.

Felizmente, a câmera acompanha a vibração da dupla. Trata-se de uma captação dinâmica, móvel, espontânea, seguindo-os pelo centro da cidade. A imagem sossega apenas quando se apresentam. Neste momento, o plano longo e fixo permite cantarem e tocarem sem interrupções, enquanto o olhar do filme (e aquele do espectador) se converte em espectador-admirador. Se as composições formais pareciam excessivamente rígidas e frontais em A Filha do Palhaço, elas se tornam novamente fluidas, despojadas e orgânicas em Centro Ilusão

Ao final, estamos todos (espectadores, diretor, demais artistas) na posição daqueles colegas de apartamento, espremidos no canto da sala, assistindo aos heróis entoarem a canção-título. O palco que Tuca e Kaio sempre desejaram, e que a ficção não oferece, se concretiza no filme dedicado a ambos. Ao invés de um drama sobre seu fracasso, faz-se com que a própria existência do longa-metragem constitua uma prova de seu valor — em outras palavras, a exposição íntima e próxima de dois sujeitos invisíveis. Kaio representa aquilo que Dayane (de Quando Eu Me Encontrar) teria feito quando fugiu de casa e desapareceu, voluntariamente: precisou se tornar invisível para ser quem sempre quis. Mas, desta vez, a câmera foge junto. 

Centro Ilusão pode ser questionado por um ou outro cacoete desfavorável (alguns problemas de montagem na cena da compra de cordas para o violão; o retorno mágico de Kaio para Tuca, no instante exato em que este último sacrifica seu bem maior). No entanto, nada disso prejudica uma emoção genuína, palpável, tanto em pequenas aparições (Démick Lopes em estado de graça) quanto no companheirismo gratuito, desinteressado, que resiste na cidade grande (Di Ferreira, novamente, como amiga ideal). Pedro Diógenes ama a música como ama Fortaleza; como ama seus personagens; como ama vê-los simplesmente existirem, no cotidiano. Há uma beleza comovente nesta forma de olhar para o mundo.

Centro Ilusão (2024)
8
Nota 8/10

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