Neste documentário, Murilo Salles não facilita a vida do espectador. O cineasta dispensa os elementos mais básicos de identificação, projeção ou estrutura narrativa. Assim, não existem personagens principais no filme para além da Baía de Guanabara, enquanto protagonista capaz de atar os oito segmentos. Nenhum ser humano possui nome, passado, desejos, conflitos. Não há nenhum tipo de explicação de ordem contextual, e tampouco existem diálogos ou interações marcantes entre dois seres humanos, ou entre os personagens calados e a natureza.
Logo, a experiência se desenvolve como uma sucessão melancólica e crepuscular (este sendo o período de predileção dos diretores de fotografia) de registros impressionistas. O autor toma a precaução de admirar a baía-tema pela Maré, São Gonçalo, Paquetá, Niterói. Observa homens e mulheres; crianças, adultos e idosos, sozinhos ou em grupos. Favorece os cidadãos desfavorecidos, apesar de visitar a praça de alimentação dos shopping centers.
Neste sentido, revela-se coeso em sua proposta. Nenhum trecho destoa dos demais, para o bem ou para o mal. Os oito episódios, numerados por meio de letreiros, possuem durações equivalentes, uma maneira semelhante de olhar para as pessoas e os espaços, além de uma rigidez análoga na composição dos planos. Salles opta por imagens cuidadosamente elaboradas, além de um trabalho precioso de som direto, somado a uma trilha sonora discreta e atmosférica.
Uma Baía transparece a impressão de uma obra de constatação, um atestado de que aqueles lugares existem, de que aquelas pessoas vivem. No entanto, o que o cineasta teria a dizer a respeito dos lugares e pessoas que filma?
Ele foge, deste modo, à impressão de urgência associada a parte dos documentários: trata-se de uma obra de construção, moldada e desenvolvida (enquanto roteiro e discurso) na fase da montagem. O cineasta possuía 7h20 de material em sua primeira versão, conforme declara em comunicado à imprensa. É fácil acreditar nesta informação, visto a variedade de cenários e captações, em distintos momentos do dia e da noite. A amplitude do olhar também confirma a impressão de que os artistas não sabiam, ao certo, o que fazer com estas captações, reservando à edição a tarefa de decidir o que, afinal, pretendia se transmitir através do mosaico humano.
Ora, Uma Baía transparece a impressão de uma obra de constatação, um atestado de que aqueles lugares existem, de que aquelas pessoas vivem, e coexistiram com Salles e sua equipe durante um tempo preciso. Este seria o cinema enquanto ça a été, como diria Barthes — a imagem registrando que algo aconteceu, em determinado momento, frente às câmeras. A quem interessar possa, existem tais cenários e tais pessoas na região ao redor da Baía de Guanabara. Ninguém duvidaria, acredito, desta afirmação tão singela. No entanto, o que o cineasta teria a dizer a respeito dos lugares e pessoas que filma?
Neste aspecto, a premissa ambiciosa começa a se enfraquecer. É difícil se encantar com o pretenso humanismo da iniciativa, posto que os seres humanos permanecem anônimos, silenciosos, na condição de objetos de estudo, ao invés de sujeitos dotados de autonomia, subjetividade e protagonismo. Formam uma massa indissociável e intercambiável de cidadãos que circulam por aquele espaço. Na maior parte dos registros, nem sequer vemos o rosto, a expressão dos indivíduos. Os estivadores estão cansados, irritados, sonhadores? O artista que cria esculturas com o lixo está exultante, satisfeito com seu trabalho? Mistério.
Conhece-se pouco a respeito da Baía de Guanabara ou de suas particularidades. Ninguém solicita letreiros, narrações ou entrevistas tradicionais, longe disso. No entanto, há inúmeras formas poéticas e interessantes, do ponto de vista da linguagem, de investigar a história de uma região, ou de representar as suas contradições. De que maneira estes cabeleireiros, pedreiros e mergulhadores interagem com as pessoas ao redor? Por quanto vendem seus produtos? Sempre viveram ali? Amam, se divertem, cuidam de familiares, possuem objetivos a longo prazo? Novo mistério.
A descrição da obra entregue à imprensa relembra que todos os personagens são descendentes de indígenas Tupinambás-Tamoios. Menciona que estas águas recebiam as caravelas, séculos atrás. Sublinha que o lugar sofre com o descaso das autoridades e a degradação ambiental crescente. Acrescenta que a região foi considerada uma espécie de paraíso por Américo Vespúcio. Trata-se de informações fascinantes, ainda que nenhuma delas se encontre no filme. Caso estas reflexões tivessem entrado na proposta, certamente ofereciam material para debate.
Na linguagem cinematográfica, o stablishing shot constitui um plano de situação, utilizado em ficções ou documentários para determinar, ao espectador, onde a ação se encontra, e quem são os personagens associados a tal espaço. Imagens de fachadas de prédios, antes de um corte, levando a um apartamento ou escritório; e captações aéreas de drones sobre algum bairro ou cidade são os exemplos mais comuns deste procedimento. Ora, Uma Baía soa como um filme composto unicamente por stablishing shots — um stablishing film, espécie de prelúdio à narrativa que jamais se inicia.
As cenas parecem nos dizer: olhe para este espaço. Agora, olhe para este. E para esta pessoa. E aquela. Nós, espectadores acostumados aos ângulos, aos enquadramentos e à gramática do cinema, obedecemos. Entretanto, após tantos slides, tantos fragmentos, resta a pergunta: por que estamos assistindo a estas sequências? Que discurso, mensagem, proposta ou ponto de vista se pretende trazer a partir delas? A montagem jamais oferece nenhuma fricção, surpresa ou mesmo uma noção de diálogo inesperado entre os trechos isolados. Eles se sucedem numa cronologia próxima à aleatoriedade: um vem depois do outro, simplesmente.
Chamar os trechos de “fábulas” soa inadequado pela ausência do maravilhamento, da ludicidade e do aspecto moral esperado desta forma de narrativa. Convém lembrar, em conclusão, que o cinema “direto” ou “verdade” nunca se limitou a observar o mundo que nos cerca. Sempre emitiu opiniões através da montagem, sugeriu padrões de comportamento, apontou para desigualdades sociais ou falhas sistêmicas. Basta assistir às obras de Frederick Wiseman ou Jean Rouch. Se um filme deposita todo o seu raciocínio na montagem, cabe a esta articulação transmitir alguma visão de mundo a respeito dos elementos analisados. Senão, a imagem se torna princípio, meio e finalidade de si mesma. Encerra-se exatamente onde começou.