Suspended Time (2024)

O cinema de papai, de novo

título original (ano)
Hors du Temps (2024)
país
França
gênero
Drama
duração
105 minutos
direção
Olivier Assayas
elenco
Vincent Macaigne, Micha Lescot, Nine D’Urso, Nora Hamzawi, Maud Wyler
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

O novo filme dirigido por Olivier Assayas é narrado igualmente pelo cineasta. Em off, ele apresenta ao espectador a cidade da sua infância; exibe a casa onde cresceu. Cita a propriedade dos vizinhos, explica quais árvores se modificaram, quando foi construída a quadra de tênis. Neste local amplo e muito confortável, ele passou a epidemia de Covid-19, período que o título original chama de “fora do tempo”, e que o título internacional considera um “tempo suspenso”. 

Com a ajuda de atores profissionais, sobretudo Vincent Macaigne, efetuando o papel de alter-ego, o diretor evoca lembranças tanto da juventude quanto do passado recente, tendo como elo de ligação o casarão no interior da França. Assayas revela a inspiração para seus filmes, recorda a ruptura com a namorada (apresentando ensaios fotográficos da nudez dela), cita a época em que desenvolveu Irma Vep. Para a cinefilia mais preocupada em consumir autores do que filmes, trata-se de um prato cheio — o diretor oferece ao espectador um banquete com seu processo de pensamento.

Deparamo-nos com duas subcategorias populares no cinema dos últimos anos, sobretudo desde a pandemia: em primeiro lugar, as obras autobiográficas, familiares, de tom confessional; e em segundo lugar, as narrativas a respeito do confinamento em anos pandêmicos. O texto cita a dificuldade de nos separar das pessoas queridas, de manter o distanciamento social, de evitar aglomerações, de higienizar embalagens, de retirar as roupas usadas na rua antes de entrar em casa, etc.

Esta abordagem leve e burguesa soa como uma afronta, um white people problems — Covid edition. O filme ostenta de maneira caricatural os clichês associados à Nouvelle Vague.

Ora, Suspended Time encontra limitações evidentes nas duas vertentes. No que diz respeito à representação do coronavírus, resulta antiquado e anacrônico: o que vêm fazer, em 2024, as obras nos relembrando da existência deste período em que nos fechamos e tememos pela morte dos parentes? O problema não se encontra na abordagem do tema, que merece discussão cinematográfica tanto quanto qualquer outro, e sim na evocação nostálgica, por combinar “os bons tempos da minha juventude” com “os bons tempos em que fiquei fechado com meu irmão, descansando no campo”.

Isso porque o longa-metragem tem pouco a oferecer a respeito desta experiência recente para além da rememoração de sua existência. É difícil pensar que alguém tenha se esquecido dos fatos ocorridos, de modo que esta abordagem resulta simultaneamente velha e recente demais. Ela nos avisa acerca de algo que acaba de ocorrer, como se também não tivéssemos atravessado este tormento; e se vê incapaz de oferecer qualquer reflexão pertinente pós-pandemia, num período em que começamos a discutir a melhor maneira de superar o trauma e analisar o ocorrido. 

Assayas se assemelha à pessoa inconveniente que se volta ao sujeito em luto recente pela morte da mãe e lhe pergunta: “Lembra de quando sua mãe morreu?”. É claro que ele se lembra. A pergunta soa até ofensiva. Ele também provoca incômodo em sua representação alienada da crise sanitária, lamentando-se, por meio de personagens narcisistas, de ter permanecido num casarão imenso, cercado por florestas, com quadra de tênis e vinho à vontade, sem a necessidade de trabalhar porque nunca enfrentou problemas de dinheiro.

Depois de tudo o que passou, envolvendo milhões de mortes, e tendo a gestão do coronavírus escancarado abismos sociais, esta abordagem leve e burguesa soa como uma afronta, um white people problems — Covid edition. Em voz off, Assayas se lamenta pelo fato que o pai teve a possibilidade de comprar um quadro de Modigliani, porém recusou a oferta. Na trama, Paul (Vincent Macaigne) reclama que sua panela de 90 euros queimou rápido demais, e decide que precisa de um novo iPad, porque o anterior está lento demais. Etienne (Micha Lescot) fica viciado em fazer crepes e, de vez em quanto, se descontrola: “Estou sufocando! Quero me sentir livre”.

Enquanto isso, o quarteto formado pelos dois irmãos e suas namoradas cita uma infinidade de poemas, romances, livros e filmes. Escutam rock, lembram de Era uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, decidem se vão dormir mais cedo ou assistir a um filme mudo. Escutam podcasts a respeito de Jean Renoir, citam versos de Racine de cor. Namorado e namorada debatem uma peça literária bem conhecida por ambos: “A autora só escreveu duas cartas”, ele diz, e ela: “Faz partes dos tesouros da literatura francesa”. Explicam como um professor dedicado, ao espectador que se considera menos aculturado. Senão, a quem mais se transmitiria tal lição?

O longa-metragem ostenta de maneira caricatural os clichês associados ao cinema francês “clássico”, herdeiro da Nouvelle Vague: a verborragia intelectual e amorosa; a câmera simples flanando pelos dias, em luz natural; as duplas de personagens que pensam apenas nos próprios prazeres. A sociedade lá fora inexiste. Os problemas de Paul residem no fato de não poder pegar o café pela manhã, porque o piso ainda está molhado, enquanto Etienne reclama que sua emissão de rádio (jamais ameaçada pela pandemia) não aceita canções tristes.

Quando os “jovens turcos” migraram do pensamento crítico à produção de filmes, expressavam-se de maneira raivosa contra o dito “cinema de papai”. Tratava-se das produções “de qualidade” dos anos 1940, muito convencionais e formulaicas, desprovidas de qualquer inventividade narrativa ou estética. Ora, hoje o cinema francês convive com esta herança opressora do movimento que foi fundamental em sua época e produziu obras-primas incontestáveis. No entanto, esta maneira de filmar e pensar se adequa mal aos tempos contemporâneos.

Olivier Assayas já trouxe filmes magníficos, a exemplo de Clean (2004) e Horas de Verão (2008). No entanto, recentemente, mostra-se a filmes fracos, umbiguistas, incapazes de compreender as novas demandas sociais, políticas e estéticas. Algo semelhante pode ser dito das obras profundamente machistas de Philippe Garrel ou burocrátricas de Arnaud Desplechin. Estes dois últimos também possuem pérolas em suas carreiras, e continuam selecionados a qualquer festival em virtude da marca que construíram para si.

Entretanto, talvez seja o caso de acertar as contas com este novo “cinema de papai”, muito elitista, masculino e branco, capaz de pensar apenas em seus amores e suas posses (elementos quase intercambiáveis nestas obras), fechando os olhos ao mundo ao redor. Cada vez que algum(a) cineasta com o vigor de Alice Diop, Katell Quillévéré, Julie Ducournau ou Ladj Ly aparece nas telas, esta abordagem pomposa e pseudo-existencialista dos cineastas veteranos resulta empoeirada, e particularmente deslocada num festival de cinema dedicado a refletir o presente e apontar rumos para o futuro.

Suspended Time (2024)
3
Nota 3/10

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