Uma longa espera durante a cerimônia de casamento. Aya (Nina Mélo) e o noivo estão sentados lado a lado, mas a mulher está claramente nervosa. Quando tiram uma foto do casal, percebe-se o sorriso de um, e a expressão contrariada da outra. Ele mata violentamente uma formiga em sua perna, o que, neste filme, significa um homem de mau-caráter. No altar, Aya consegue dizer “não” aos votos de casamento. Ela levanta o vestido branco, sai pela porta e caminha através das ruas, onde todos admiram a noiva em fuga. A música melodramática invade conta da cena.
Em Black Tea: O Aroma do Amor, o cineasta mauritano Abderrahmane Sissako trabalha com uma sensibilidade particular. Trata-se de uma forma de cinema em desuso há décadas, por representar um orientalismo para exportação, uma “delicadeza” (no sentido de debilidade, lentidão, languidez) que se costumava associar, pejorativamente, aos países como China e Japão. Em outras palavras, uma ideia estereotipada da cultura do outro, que seria honrado e elegante, em oposição à “nossa” brutalidade (colocando neste caldeirão qualquer país do sul do globo).
O longa-metragem é saturado de enfeites. Ganha uma trilha sonora quase ininterrupta de cítaras doces, tanto na transição entre cenas quanto durante as conversas de Aya, que deixa a Costa do Marfim para viver em território chinês. O fundo de cada imagem está desfocado, favorecendo a percepção única dos personagens (escolha estranha para um filme que, supostamente, se interessa pela cultura do novo país). A loja de chás e o restaurante parecem iluminados à luz de velas, de modo a acentuar o brilho dos vestidos vermelhos das mulheres que entram em cena através do mesmo ângulo, deslizando vaporosamente pelos corredores.
Trata-se de uma concepção artística ofensiva em diversas passagens — sobretudo a comparação da mulher africana com o chá preto, que “desce agradável no paladar”.
O drama adquire uma aparência de câmera lenta constante, embora as imagens estejam em velocidade convencional. Isso porque os gestos e ações são condicionados à lentidão “sensual”: cada sequência é comandada por duas pessoas dialogando, de maneira tímida e respeitosa. Um fala, o outro espera alguns segundos, e então fornece a sua réplica. Não há textura ou choques nesta configuração: todos na China, sejam eles nascidos no país, ou africanos emigrados, convertem-se em poços de comedimento e timidez.
Através deste procedimento, acredita-se valorizar o romance e os afetos “puros” em um mundo de malícias. Por isso, a paixão de Cai (Chang Han) por Aya atinge o ápice do erotismo quando ele encosta delicadamente a ponta dos dedos no ombro da pretendente. Em segredo, ambos se consideram unidos, e fazem planos para o futuro. Concebe-se o amor sem paixão, sem sexo, sem vigor, características que aparentemente pertenceriam à Costa do Marfim, mas ainda não teriam sido exportados à China. Em outras palavras, uma concepção fetichista (e um tanto moralista) da alteridade.
Os diálogos são compostos por frases de efeito que reforçam a artificialidade dos gestos e o caráter exemplar dos personagens. “Não se prenda ao passado. Não pense no futuro. Viva o presente”. “O amor não pode ser comprado”. “Eu não sei se algum dia te amei”. “Só a verdade pode me proteger”. “Eu achava que o amor significava esperar pela felicidade”. Em grupos de dois, sentados em frente ao outro, estes fantasmas do sentimentalismo expressam-se unicamente a respeito de amar e ser amados. As dinâmicas se atêm às conversas — nenhuma outra ideia de mise en scène é introduzida, ao longo de quase duas horas de duração.
Algumas cenas beiram o constrangimento. O flash de duas personagens femininas se tocando numa inserção atemporal, dissociada da narrativa, transmite o fetiche lésbico da direção. O discurso antirracista didático incomoda tanto quanto as falas odiosas do avô, destinado a condensar todo o preconceito do mundo em poucos minutos. A passividade da mulher escondida no quarto, chorando até dormir, desrespeita Aya, ao invés de valorizá-la. Sissako nunca esconde o machismo neste ponto de vista que ainda coloca mulheres em posição de submissão. “Livre” do casamento indesejado em seu país, a heroína aceita ser mantida em segredo pelo novo amante chinês.
Isso sem falar numa série de conveniências ou exageros, que despertaram risos de escárnio na sala de cinema. O uso de uma formiga e uma borboleta digitais, de qualidade amadora, seriam mais propícios à esquete paródica. O casal em frente à sacada de Aya, feliz e esperando um bebê, ilustra didaticamente a vida de que a mulher abriu mão; enquanto o reencontro com a filha no Cabo Verde ocorre no instante exato em que ela prova um vestido tipicamente chinês, reforçando a sua cultura.
É difícil pensar que este roteiro tenha passado por tantas mãos (esta é uma coprodução entre França, Mauritânia, Luxemburgo, Taiwan e Costa do Marfim) sem despertar alguns incômodos aqui ou acolá. Ainda mais improvável que o material filmado tenha sido montado e finalizado em plena concordância de uma centena de percepções. Trata-se de uma concepção artística francamente ofensiva em diversas passagens — sobretudo a comparação da mulher africana com o chá preto, encorpado, que “desce agradável no paladar”.
Ainda mais surpreendente é encontrar este tipo de projeto na mostra competitiva de um dos maiores festivais de cinema do mundo. Compreende-se a vontade da Berlinale de incluir veteranos africanos na direção, e de opor diferentes visões de mundo. No entanto, a curadoria precisa afirmar qual forma de cinema defende, e qual não deseja valorizar com o tapete vermelho e os holofotes de um evento deste porte. A seleção de Black Tea: O Aroma do Amor, com todas as honrarias e visibilidade, tampouco soa muito lisonjeira com as muitas centenas de obras rejeitadas no processo de seleção.