Sons parte de uma estrutura muito inteligente. Em primeiro lugar, faz com que o espectador se identifique com Eva (Sidse Babett Knudsen), uma carcereira gentil e dedicada ao trabalho. Ela passa os dias na ala 5, setor de baixa periculosidade, onde oferece cursos de meditação e matemática aos presos. Ajuda-os sempre que solicitada, e acende os cigarros de cada um. Os colegas comprovam, à unanimidade, o bom caráter desta figura. Por isso, colocamo-nos rapidamente do lado da protagonista.
No entanto, um novo detento chega na instituição. Pelo olhar de surpresa de Eva, descobrimos se tratar de algum conhecido, que mexe profundamente com os sentimentos da mulher. Seria um ex-companheiro? Um filho abandonado? Alguém que lhe fez mal na juventude? O roteiro guarda suas cartas na manga, oferecendo meia dúzia de sequências intensas, comprovando a perturbação da funcionária-modelo, transformada repentinamente num caldeirão em ebulição.
Ora, uma vez que compreendemos seu laço com Mikkel (Sebastian Bull), o fervor se justifica — ela tinha, de fato, motivos de sobra para tal obsessão. No entanto, a mulher bondosa começa a perseguir seu desafeto. Muda-se para o setor de alta periculosidade, e aplica sobre o detento número 17 um sem-número de penalidades mais ou menos assumidas, que vão da intimidação à humilhação, do assédio moral à tortura. Parte do comportamento é legitimado pelos colegas sob o pretexto de estresse, ou tentativa de se manter à altura dos sujeitos brutos. O espectador, no entanto, sabe que existe algo mais grave por trás destas atitudes.
Assistimos a cenas realmente chocantes de agressão, movidas pela personagem que o filme nos dizia ser uma figura de índole impecável. O que podemos fazer? Seguimos defendendo Eva, ou rompemos com ela?
O diretor Gustav Möller oferece ao espectador a posição incômoda de cúmplice. Somos os únicos a testemunhar os gestos secretos de Eva para desafiar o adversário. Assistimos a cenas realmente chocantes de agressão, movidas por aquela que o próprio filme nos dizia ser uma figura de índole impecável. Ora, o que podemos fazer? Seguimos defendendo Eva, graças às feridas psicológicas que conduzem a tamanha explosão, ou rompemos com ela, compreendendo que passou amplamente dos limites? Qual seria o limite, afinal, de tolerância à crueldade com um ser humano?
Sons se converte num tenso jogo de moral e ética, onde o espectador desempenha um papel tão importante quanto aquele de Eva, de Mikkel, e dos demais carcereiros que toleram e, de certo modo, incentivam os arroubos de fúria da colega. O adversário, descrito de forma animalesca a princípio, acalma-se, demonstra indignação com o tratamento recebido. Deveríamos então a sentir piedade, ou pelo menos nos preocupar com ele? Seria digno de pena um homem dotado de passado tão atroz? É importante que o embate ocorra no interior de uma prisão “humanizada”, prevendo efetivamente a reinserção social dos sujeitos ali presentes.
O roteiro desenvolve então uma fascinante alternância de poder entre os dois personagens centrais. Ora Eva controla a dinâmica, aplicando as ações de sua escolha. Ora Mikkel, agressor-transformado-em-vítima, percebe-se capaz de perseguir a carcereira pelo tratamento indevido, podendo exigir recompensas e favores. Ambos ajustam suas estratégias numa progressão implacável: as sequências se tornam cada vez mais fortes, mais perigosas, rumo à explosão de toda a verdade sobre ele e sobre ela. Ambos têm muito a perder com esta provocação, mas não conseguem se impedir — a racionalidade foi abandonada em prol de um esquema perverso, controlado somente pelas pulsões.
O projeto investiga o que acontece quando a justiça se converte em vingança, e quando um equipamento do Estado, previsto para corrigir falhas dentro das regras constitucionais, se torna uma oportunidade de acertar contas com desafetos. O que dizer de nossa humanidade a partir do instante em que comemoramos mortes em presídios, brutalidade policial e outras formas de correção por meio da dor e do medo? Se nossos princípios legais punem indivíduos que cometem crimes, que direito teria o Estado de aplicar crimes semelhantes? Como podemos ser contra a violência do cidadão, mas favoráveis àquela dos governos?
Möller faz com que esse caldeirão transmita um verdadeiro sentido de asfixia, ao fechar a proporção da imagem, em janela mais próxima do quadrado, e impedir que Eva volte para casa. Ao longo de 100 minutos, ela será vista única e exclusivamente no local de trabalho. Desconhecemos maridos, amigos, paixões fora deste ambiente. A trabalhadora anuncia várias vezes que seu turno acabou e está indo embora, até alguma urgência a trazer de volta. Depois do também excelente The Guilty (2018), o cineasta sueco volta a trabalhar com a tensão derivada de espaços fechados, únicos, de onde os protagonistas se veem impedidos de sair.
Além disso, a direção de fotografia nos coloca sempre perto ao corpo e às ações de Eva, mesmo quando Mikkel se converte no alvo de ataques. O discurso não se esconde por trás de uma pretensa imparcialidade, da intenção de “escutar os dois lados”, colocando uma perspectiva contra a outra, igualmente válidas. Ele se concentra apenas na mulher, aumentando o desconforto mediante suas atitudes. O espectador jamais recebe instantes de respiro, de equilíbrio de tom. A montagem sustenta a inquietude quanto aos próximos acontecimentos, da primeira à última cena.
Esse trabalho impecável de cinema não seria possível sem atuações à altura. Sidse Babett Knudsen mostra-se firme em todos os instantes, mesmo quando encara o recém-chegado pela primeira vez, ou quando nega alguma ação proibida. A atriz possui expressões rigidamente controladas, permitindo uma mínima levantada no canto dos lábios quando desfruta de um sadismo, ou um olhar levemente arregalado e lacrimoso face ao temor da represália. Apenas o público enxerga essas transformações mínimas, vistas à lupa. Para os funcionários ao redor, ela deve ter se passado, esse tempo inteiro, como uma funcionária dedicada.
Por isso, o longa-metragem encara com coragem o desafio de talvez romper o afeto com a protagonista, além de aludir a traumas jamais concretizados em imagens. As fortes agressões em cena dizem respeito a agressões ainda mais fortes, no passado, o que permite ao espectador utilizar o seu próprio repertório de traumas para preencher as lacunas voluntariamente deixadas pelos criadores. Passagens envolvendo um isqueiro, um saco plástico e bandejas de comida provocam uma angústia potente, pela insinuação de que a estrutura possa explodir a qualquer momento.
Sons atinge sua melhor metáfora quando explora o título, ou seja, as relações maternas destes homens encarcerados. Por mais hediondos que tenham sido os seus passados, eles ainda serão os filhos de alguma mãe. O espelhamento entre Eva e Helle (Marina Bouras), mãe de Mikkel, proporciona um excelente embate humano, além de mais um motivo para o espectador temer pelo destino de todos os envolvidos. Como reagem as mães de filhos infratores? Sentem culpa? Defendem-no, ou esperam que sejam punidos? Com apenas duas mulheres em cena, o texto traz uma variedade impressionante de estados psíquicos a este respeito.
A presença deste longa-metragem na mostra competitiva do Festival de Berlim joga uma luz à disputa, até então, bastante fraca. A obra se mostra tão superior a todas as outras, que soa absurdo não recompensá-la em premiações. Conforme a Berlinale atravessa uma crise institucional, com troca de curadores e pressões para se tornar mais comercial, o suspense dinamarquês-sueco representaria um cinema de altíssima qualidade, e ainda assim, acessível, como Möller sabe fazer. Este seria o Anatomia de uma Queda do evento alemão, exemplar tanto no roteiro, na construção da tensão quanto no brilhantismo de sua atriz principal, no papel de uma mulher de moral ambígua. Seria uma lástima não aproveitar a oportunidade de reconhecer tamanha proeza.