Fiona Gordon e Dominique Abel sempre foram criadores muito singulares dentro do cinema de autor. Palhaços de formação, acabaram optando por comédias de humor físico, rocambolesco, inspiradas nos projetos lúdicos de criadores como Charles Chaplin e Buster Keaton. Com O Iceberg (2005), Rumba (2008), La Fée (2011) e Perdidos em Paris (2016), participaram dos festivais de Cannes e Locarno, além de receberem diversas indicações ao Magritte, o Oscar do cinema belga.
Para seu quinto longa-metragem, a dupla resolveu apostar num gênero sombrio: o filme noir. A Estrela Cadente (2023) acompanha a vida de Boris (Dominique Abel), ex-ativista envolvido na detonação de uma bomba, 35 anos atrás. Quando uma das vítimas do atentado o encontra, ele precisa desaparecer. Entra em cena Dom (também interpretado por Dominique Abel), um homem triste e solitário, que se parece muito com Boris. Com a ajuda dos parceiros, os dois homens trocam de lugar, embora a detetive Fiona (Fiona Abel) esteja no encalço dos acontecimentos.
O projeto combina perseguições, cenas de dança e humor baseado no absurdo, a partir de um elenco inteiramente composto por clowns e dançarinos contemporâneos. Os autores conversaram com o Meio Amargo sobre este projeto:
O contexto político do filme inclui protestos, perseguições, ameaças de terrorismo. Como acreditavam que estes temas poderiam se inserir no humor físico que costumam fazer?
Fiona Gordon: Nós não sabíamos ao certo. Nós queríamos apenas que o nosso personagem principal fosse baseado em algo real. Conhecemos muito bem a época onde este personagem se formou, porque nós dois vivemos nela. Além disso, hoje atravessamos tempos ainda mais loucos. Mas para ser sincera, nós não sabíamos se ia combinar bem com nosso tipo de humor. Até agora, ainda não sabemos!
Dominique Abel: É a primeira vez que brincamos com os códigos do filme noir. É uma mistura de filme de palhaços com filme noir. Geralmente, os personagens do cinema noir são ambíguos, e carregam o peso de uma culpabilidade. Então pensamos nos filmes de Hitchcock e Marcel Carné, como Cais das Sombras (1938), e pensamos: “Como seria Boris em clown? Por que ele teria precisado se esconder durante 35 anos?”. Uma vítima o persegue para atirar nele, então pensamos que ele pudesse ser um ex-ativista que matou alguém por acaso, e depois de perde na busca por uma vida utópica. É mais trágico e interessante do que um mafioso comum.
Para ser sincera, nós não sabíamos se o filme noir ia combinar bem com nosso tipo de humor.
Vocês costumam fazer comédia sobre pessoas tristes. Rimos com pessoas sobre as quais normalmente não se ri.
Fiona Gordon: Todos os nossos personagens são pessoas partidas. Somos palhaços, então nosso papel é nos conectar com as pessoas às margens, trazê-las aos holofotes e homenageá-las de certo modo. E também queremos rir, é claro. É importante fazer isso diante da tristeza.
Dominique Abel: Os palhaços geralmente são lentos demais para um mundo veloz, ou pequenos demais para um mundo grande. Os marginais sempre foram grande inspiração para nós: basta ver Chaplin ou Keaton. Mesmo os autores marginais nos inspiram bastante — caso de Elia Suleiman.
Pretendem continuar explorando a fusão deste humor com outros tipos de gêneros cinematográficos? Um filme de horror de Abel e Godon seria excepcional.
Fiona Gordon: Talvez uma ficção científica distópica! Isso com certeza renderia bastante dentro desta linguagem. Mas não tenho certeza que terror desse certo, porque Dom detesta o gênero, e nem consegue assistir aos filmes.
Dominique Abel: Talvez um filme de terror clownesco, quem sabe?
Fiona Gordon: Nós adoramos Trash: Náusea Total (1987), o filme que o Peter Jackson fez antes de se tornar famoso com King Kong. É um terror de ficção científica de baixíssimo orçamento que sempre nos inspirou muito. Então algo nesta linha seria uma possibilidade.
Nós conhecemos estes personagens na vida real: na Bélgica, tivemos o CCC, grupo ativista.
A Estrela Cadente também é um filme sobre duplos, e quando temos duplos no cinema, eles tendem a ocupar o lugar um do outro. Como construíram os dois personagens masculinos?
Dominique Abel: Não trabalhamos em termos de preparação psicológica, nem imaginamos como teria sido a vida de Boris e Dom na infância, nada neste sentido. Mas nós conhecemos estes personagens na vida real: na Bélgica, tivemos o CCC, grupo ativista. Mesmo assim, não quisemos chegar tão perto assim dos fatos. Preferimos partir de um personagem que começa em forma, até decair e chegar até o fundo do poço; e outro que faz o caminho contrário. Dom cria uma teia de apoio, mas ele está triste, disposto a morrer. Apesar das dificuldades, e de si mesmo, ele encontra amigos, um amor, um trabalho, e Fiona. Mas basicamente, era apenas maquiagem e roupas diferentes!
Fiona Gordon: Os dois podem parecer deprimidos, e talvez se assemelhem neste sentido. Mesmo assim, Dom é mais solar, e quer viver, enquanto o outro busca desaparecer na escuridão.
Adoro a maneira como a linguagem corporal substitui quase todo o diálogo nos filmes de vocês. Houve desafios particulares, neste aspecto, por se tratar de um filme noir?
Fiona Gordon: Essa é a nossa linguagem, nossa maneira de falar. Improvisamos muito. Às vezes chegamos a escrever bastante diálogo nos roteiros, mas quando começamos a improvisar, sentimos que os diálogos não têm mais necessidade, porque já dissemos quase tudo com os gestos, e de maneira mais eficaz. Então cortamos os diálogos.
Dominique Abel: Nosso trabalho de escritura de roteiro consiste em encontrar situações cheias de potencial em termos físicos. Quando convidamos nossos companheiros palhaços tradicionais, e neste caso, também a Kaori Ito, uma dançarina contemporânea, começamos a trabalhar juntos. É sempre muito físico: criamos juntos, rimos juntos. O corpo é melhor para encontrar ideias do que o cérebro. Para a coreografia, fizemos quatro vezes a cena. Às vezes, não sabemos para onde vai dar, e vamos tentando, testando o que vêm à mente. No final, ficamos contentes com as cenas de dança, mas tudo vem da tentativa e erro.
É sempre muito físico: criamos juntos, rimos juntos. O corpo é melhor para encontrar ideias do que o cérebro.
Compreende-se, então, por que seja mais difícil incorporar atores em percursos clássicos a esta proposta.
Fiona Gordon: Exato. Este é um tipo de linguagem específica, que às vezes os amadores também usam de maneira muito expressiva. Mas atores clássicos estão em controle, o que pode ser um problema, porque eles não se permitem fazer coisas estúpidas. Amadores não fazem isso de propósito! Palhaços tentam cultivar sua estranheza natural. Kaori é uma dançarina, mas ela tem uma maneira muito específica de mexer braços e pernas, que também se encaixava na proposta.
Vocês criam os roteiros pensando especificamente no que gostariam de interpretar depois, ou primeiro vem a história, e então imaginam quem poderia se encaixar naqueles perfis?
Dominique Abel: Escrevemos para nós, pensando como poderíamos ser engraçados, mas entendemos que para um filme funcionar, é preciso em primeiro lugar pensar na história mais ampla, nas linhas gerais. Não descrevemos muitos detalhes das piadas ou dos movimentos no roteiro. Tentamos encontrar uma história comovente que tenha potencial físico. Então sabemos que, na hora de fazer os testes, os palhaços tomarão conta, destruindo as bases e fazendo o que bem entendem!
Em cada filme, tentamos fazer alguma coisa totalmente diferente do anterior.
De que maneira percebem a evolução de seus longas-metragens desde O Iceberg? Costumam ter um olhar muito crítico em relação à sua filmografia?
Fiona Gordon: Em cada filme, tentamos fazer alguma coisa totalmente diferente do anterior. Nossa tendência é sempre voltar para alguns lugares de conforto, mas buscamos as diferenças. Perdidos em Paris é muito mais leve, mais inocente, por exemplo. Por isso, queríamos desta vez ser mais sombrios. Mas não pensamos em termos de uma evolução constante, num objetivo específico. É sempre uma reação ao filme anterior. Queremos voltar a ter mais interação dentro de cada plano. No começo, fazíamos planos longuíssimos, e queremos voltar a experimentar com este formato. Mas é algo mais difícil de fazer, claro.
Dominique Abel: O roteiro acaba se impondo bastante no caso de um filme noir. Mesmo que a nossa histórica seja básica e simples, ela ainda tem um mistério, então precisamos seguir a história e conduzir o espectador a um lugar preciso. Talvez na próxima vez seja um pouco mais louco. Estamos pensando em uma história de robôs.
Fiona Gordon: Estamos trabalhando nesta ideia sobre robôs usados. Mas ainda precisamos desenvolver bastante pra descobrir se vai dar para mantê-la.
Todos os seus filmes foram exibidos nos maiores festivais do mundo. Vocês prestam muita atenção às respostas que chegam de críticos e espectadores?
Dominique Abel: Prestamos atenção principalmente à resposta do público, porque os críticos costumam dizer que fazemos um “espetáculo cinematográfico”. Nós precisamos do público, criamos para eles, tendo os espectadores em mente. O público nos acompanha durante a montagem! Uma plateia é totalmente diferente de um grupo de profissionais do cinema que pode nos dar várias ideias, mas um público de verdade é como uma fera — e não digo isso de maneira pejorativa, porque amo animais. Mas o público tem um ritmo particular, e suas reações são aceleradas pelas respostas das pessoas ao redor. A risada vem mais fácil. Sempre gostamos de assistir às duas ou três primeiras sessões com o público, porque ali percebemos o que realmente deu certo, e o que não funcionou tão bem.
A beleza vem deste universo único: um depósito de lixo, um canal poluído.
Outro elemento importante nos seus filmes é a decisão de situar as histórias sempre nas cidades onde vivem, certo?
Fiona Gordon: As cidades são personagens fundamentais, e também são parcialmente responsáveis por termos personagens tão machucados. A beleza vem deste universo único: um depósito de lixo, um canal poluído. Não são apenas lugares por lugares, eles têm uma função determinada. Quando partimos em busca de locação, sempre procuramos lugares que tenham alma, a exemplo do cemitério com suas plantas.
Dominique Abel: O filme noir é o gênero do desencantamento, e Bruxelas é a escolha certa para histórias de desencantamento. É uma cidade cheia de neblina, onde as ruas são meio oleosas, sujas.
A trilha sonora é determinante em A Estrela Cadente, e também subverte o que se esperaria do gênero.
Fiona Gordon: A trilha foi criada por Birds on a Wire, grupo formado por duas mulheres, Rosemary Standley e Dom la Nena, que compõem, tocam e cantam. É a primeira vez que trabalhamos com compositores deste nosso primeiro longa, O Iceberg. Pedimos às duas para assistirem aos nossos filmes, e contamos a história de A Estrela Cadente. Antes mesmo de começarmos a ensaiar, elas já vieram com várias músicas prontas, que acabamos utilizando no filme. Elas criaram algo especificamente para o filme, e foram fundamentais, porque já fizemos os ensaios com esta trilha sonora presente. Depois das filmagens, começamos a montar estas peças, a encontrar o lugar certo para cada canção.
Dominique Abel: Adoramos a personalidade poética das duas, essa voz tão singular, o violoncelo. Foi um grande prazer ter as duas conosco.
Fiona Gordon: Às vezes, quando entramos em contato com compositores, eles nos respondem: “Posso fazer o que você quiser. Posso fazer jazz, country, clássico, o que quiserem”. Mas isso não nos interessa. Queremos a personalidade real destes músicos, assim como fazemos com os atores. Eles sempre trazem sua própria personalidade ao filme, e ajustamos a história ao que nos trazem.
Dominique Abel: Este é o improviso que nos agrada tanto. Isso também vale para os diretores de arte, cenografistas, o diretor de fotografia. Precisamos criar juntos, rir juntos, encontrar ideias e soluções, todos juntos.