Festival de Vitória 2024 | Os curtas-metragens brasileiros estão melhores que os longas

A primeira noite da mostra competitiva nacional de curtas-metragens no 31º Festival de Cinema de Vitória despertou uma sensação de familiaridade. Embora o longa-metragem Não Existe Almoço Grátis, de Marcos Nepomuceno e Pedro Charbel, fosse bastante competente, os curtas-metragens se encontravam num nível superior de ousadia e refinamento cinematográfico.

A impressão não é nova, nem restrita ao evento capixaba. Em Gramado, Tiradentes, no Cine Ceará e em tantos outros eventos nacionais, os críticos de cinema concordam que nos encontramos diante de uma safra muito mais forte e expressiva de curtas do que de longas-metragens. Em outras palavras, aquilo que o cinema nacional tem feito de melhor não se encontra necessariamente nos longas — e, por extensão, no circuito exibidor tradicional, que não acolhe os curtas-metragens.

Mesmo assim, a noite de 21 de julho se iniciou com um estranho sentimento de déjà vu. A animação Saudades em Cor, de Arthur Felipe Fiel, busca nos traços simples e lúdicos uma forma de homenagear o avô falecido durante a pandemia de Covid-19. No ápice do filme, um garotinho flutua em meio aos elementos descobertos graças ao incentivo do avô. Trata-se exatamente dos mesmos elementos vistos no dia anterior, em Fala, Vô.

Talvez a escolha da curadoria tenha sido proposital: se o filme da mostra Foco Capixaba sofria com a falta de orçamento (denunciada pelo cineasta nos palcos), o título da mostra Competitiva Nacional soa como o estágio posterior, em termos de estrutura, a partir de uma proposta semelhante. Também interessa perceber como começam a chegar em 2024 os primeiros projetos, elaborados com certo distanciamento, a respeito do trauma que representou a pandemia de coronavírus no Brasil.

Quinze Quase Dezesseis, de Thaís Fujinaga, encontra uma maneira simbólica de discutir o abuso sexual. Na trama, Tamiris participa de um curso de teatro na escola, até ser assediada pelo professor. É impressionante o controle da cineasta no uso dos planos fixos, e o cuidado para sugerir, com responsabilidade ética, tanto a violência física quanto o trauma posterior ao ocorrido.

A narrativa foge ao maniqueísmo e ao tom de denúncia, evitando igualmente as soluções fáceis para “consertar o problema”. Deixa que outros momentos na vida da garota (o encontro com o amigo, a prática do basquete) representem, através do silêncio e do sentimento de vazio, uma inquietação que a personagem ainda não parece ter elaborado para si própria.

Em meio a tantos curtas-metragens de impacto, avessos à psicologia, este curta-metragem revela uma preocupação notável com aquilo que se esconde por trás de um rosto emburrado ou distante. A cena da confissão do abuso, separada por um vidro e com som praticamente inaudível, resume bem a mistura de frontalidade e delicadeza por parte da direção.

Samuel Foi Trabalhar representou o ponto alto da noite. Os diretores Janderson Felipe e Lucas Litrento acompanham a rotina de um jovem que trabalha como mascote de uma imobiliária. Enquanto se aproxima de uma colega de trabalho, ele sonha em ter a carteira assinada pela primeira vez, ainda que na condição depreciativa de “mascotinho”, vestido com a roupa pesada do personagem sob um calor intenso, fazendo coreografias na rua.

Partindo da crônica de costumes, os autores exploram os delírios do cinema fantástico, seja numa incursão no terror (a perseguição noturna em preto e branco), seja no aspecto de pesadelo (o rapaz que, depois de ter a carteira assinada, se vê literalmente preso ao uniforme). O curta-metragem oferece muitos elementos para rir, embora se trate de uma risada tensa, de desconforto ou desespero — como ocorre no melhor humor político.

Para comprovar que o cinema de gênero tem produzido as melhores e mais inventivas provocações audiovisuais, Se Eu Tô Aqui É por Mistério, de Clari Ribeiro, fechou a noite despertando belos pontos de interrogação nos espectadores do Teatro Sesc Glória. Depois de uma fala potente nos palcos, acerca da importância da representatividade trans na arte e nas plateias, o cineasta apresentou a jornada fantástico-futurista de um grupo de pessoas trans superpoderosas. Os heróis e heroínas possuem poderes e combatem vilões durante a ditadura militar, ilustrada na forma de um contexto imaginário dos anos 1960.

Atores e atrizes transexuais e travestis unem-se a Zezé Motta e Helena Ignez, enquanto o cinema clássico-narrativo se funde a uma estética kitsch, camp e queer, possível apenas em nossos tempos digitais, quando cineastas de outras origens e identidades podem expressar sua visão de mundo.

Compreende-se que festivais como Roterdã e os maiores festivais brasileiros prestem tanta atenção a obras como Se Eu Tô Aqui É por Mistério, Casa de Bonecas e Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui: este coletivo de filmes radicais, provocadores e orgulhosamente LGBTQIA+ tem transparecido um vigor impressionante, onde a afronta passa em primeiro lugar pela estética.

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