Este ano, o 31º Festival de Vitória reservou alguns de suas seleções mais promissoras para o mesmo dia e horário — forçando os críticos a fazerem escolhas difíceis entre a mostra Quatro Estações, voltada ao cinema LGBTQIA+, e a mostra Mulheres no Cinema; e depois, entre a mostra Do Outro Lado, focada no cinema fantástico, e a mostra Cinema e Negritude.
Selecionando um percurso propício aos devaneios estéticos, foi possível encontrar uma série de curtas-metragens que se afastam do real para melhor emitir um comentário a respeito dele. Trata-se de propostas que pensam a fantasia, o terror e o kitsch enquanto formas de dialogar com certa aparência de normalidade da arte e da vida.
Em especial, Onde Está Mymye Mastroiagnne? e Pirenopolynda despertam atenção pela profunda criatividade, decorrente do abandono do naturalismo. O primeiro, dirigido por biarritzzz, segue a confissão de uma cabeleireira em busca da amiga desaparecida. No entanto, nada em sua prática profissional se aproxima do realismo: o salão está coberto por tigres de pelúcia, e a tinta de cabelo é feita de slime.
Estas concessões funcionam como porta de entrada para um mundo de animação, em traços ostensivamente robóticos, onde uma stripper explora metaversos narrados pela voz feminina e robótica do Google. Ao final, a canção Greatest Love of All, de Whitney Houston, ganha um inesperado lip sync em deepfake a partir da imagem protagonista, convertida em sereia. Se esta descrição soa insana, é porque o filme acompanha este mesmo fluxo de pensamento que nada deve ao espectador — nem a linearidade, nem as relações de causa e consequência. Um labirinto prazeroso de se perder.
Já Pirenopolynda imagina uma confluência entre o imaginário religioso da Festa do Divino, em Goiás, com as subjetividades LGBTQIA+ da região. Seria possível unir estas duas pontas entre progressismo e conservadorismo, ou entre tradição e modernidade? Os diretores Izzi Vitório, Bruno Victor e Tita Maravilha colocam três amigas trans e travestis para cantar e cozinhar entre elas, utilizando técnicas familiares sobre o preparo da pamonha, aplicadas à sua estética.
O resultado bebe tanto nas histórias pessoais das criadoras quanto nas ferramentas específicas da performance não-narrativa. Ainda combina o digital nítido e profissional com experimentações em digital de baixa qualidade, e divide a tela em três para fornecer cenas em paralelo. “A arte travesti é urgente”, declara, num slogan que talvez se aplique a esta concepção audiovisual na totalidade. Este foi o curta-metragem mais impactante desta seção.
A mostra Quatro Estações também trouxe Quando Você Vem me Visitar, uma evocação poética-drag dos medos relacionados sobretudo ao bullying e à discriminação. “Silenciosamentes cruéis, as vozes”, evoca a narração de Renata Carvalho.
O diretor Henrique Arruda explora a corporeidade específica dos códigos drag, além do glamour e a extravagância desta personificação do feminino, para corresponder a uma forma de contraponto à perseguição contra as identidades. Embora o princípio não se desenvolva tanto em seus seis curtos minutos, ele se resolve de maneira coesa, e ciente do alcance desta iniciativa.
Talvez o trabalho menos instigante da mostra provenha justamente daquele que se pretende mais naturalista, e também mais herdeiro de códigos narrativos convencionais — a novela e o romance clássico, em especial. Ficção Suburbana imagina um casal de garotas visitando os amigos e familiares na periferia. Foca-se na concepção ultra colorida e sorridente dos almoços de domingo e dos beijos em casa, no provável intuito de combater narrações miserabilistas a respeito do lesbianismo.
No entanto, recaem em certa idealização igualmente apartada de um discurso engajado. Os diálogos soam artificiais na boca das atrizes; e as conversas com amigos, num plano único, carecem de dinamismo. Ao final, a obra da diretora Rossandra Leone se ressente de mais ensaio e construção coletiva para que os afetos em cena parecessem verossímeis.
Em geral, a seleção de curtas-metragens LGBTQIA+ se provou mais instigante do que aquela reservada ao cinema fantástico. Nesta, destacou-se Curacanga, de Mateus Di Mambro. A animação sombria aplica ao folclore brasileiro a história de um jovem disposto a matar o monstro da floresta enquanto prova de amor à mulher dos seus sonhos.
Embora parte da narrativa pareça confusa, notam-se instantes verdadeiramente assustadores (o bebê-boneco em chamas) e um trabalho muito competente de vozes originais, capazes de transmitir o drama dos personagens face aos perigos noturnos.
Em contrapartida, os medos de Arapuca teimam em funcionar graças à insistência na compreensão de que medo equivale a catarse. Nesta fábula entre pai homofóbico e filho gay, tudo se resolve no grito, no choro, no desespero. Ora, os personagens berram e perdem a cabeça antes mesmo que conheçamos suas personalidades e os motivos de tal descontrole.
Por mais que o diretor Joel Caetano busque uma correspondência entre homofobia e monstruosidade, a narrativa se perde tanto nos clichês desgastados do horror (o plano aéreo do carro dirigindo entre as árvores, a trilha sonora exagerada e insistente), quanto nos diálogos e atuações mais propensos à paródia do que ao horror. Existe um problema evidente de tom e ambientação no projeto que se pretende muito mais grave e sério do que o tímido roteiro lhe permite ser.
Em chave mais leve, Do Observatório me Viram combina o documentário com a ficção a partir de Antônio Faleiro, o Niginho, homem fascinado por extraterrestres, e autor de romances fantasiosos a respeito das criaturas. Por mais que as diretoras Thaís Silva e Giovanna Giovanini demonstrem certo afeto por este homem, elas chegam perto de ridicularizá-lo com o andamento da obra, graças à inserção cômica de efeitos de ficção científica e à disposição em registrá-lo de capacete (espacial?). O carinho e a condescendência se confundem de maneira perigosa.
Por fim, nas duas mostras, os melhores projetos foram aqueles dispostos a abandonar radicalmente a realidade e suas convenções (a narrativa linear, o imaginário cis-hétero, os filmes norte-americanos de terror). Quanto mais os autores extravasaram para linguagens e lógicas próprias, melhor se saíram. A mostra reafirmou a compreensão de que o cinema marginal, ou de gênero, precisa buscar seus símbolos pessoais, ao invés de se apropriar das fabricações alheias.