Não Fale o Mal (2024)

O inferno são os outros

título original (ano)
Speak No Evil (2024)
país
EUA
gênero
Terror
duração
110 minutos
direção
James Watkins
elenco
James McAvoy, Mackenzie Davis, Scoot McNairy, Aisling Franciosi, Alix West Lefler, Dan Hough, Kris Hitchen, Motaz Malhees
visto em
Cinemas

Era uma vez um casal que aceitou viajar com outra família, desconhecida, para uma casa isolada no campo. Afinal, precisavam descansar, e que problema teria em passar o fim de semana com pessoas diferentes, certo? No entanto, com o passar dos dias, foram percebendo que os costumes de seus anfitriões eram incômodos, provocadores, ofensivos. Descobriram, por trás da hospitalidade, uma forma de perversidade que jamais teriam imaginado. A proposta de passeio constituía uma armadilha.

Costumamos pensar em contos de fada como cautionary tales (fábulas de precaução) voltadas às crianças. Através do medo, estas histórias avisam que não se pode falar com desconhecidos, desobedecer aos pais, aceitar presentes ou vantagens de estranhos. Afinal, o mundo lá fora é muito perigoso. Antes da higienização destas tramas por parte da Disney, as narrativas orais de séculos atrás possuíam um caráter mais sangrento, próximo da narrativa de horror. Basicamente, a fuga das normas e dos ensinamentos equivalia a uma ameaça constante de morte.

Não Fale o Mal (Speak no Evil, 2024) representa uma rara fábula de precaução para adultos. Desta vez, são eles que, por ingenuidade ou credulidade, cedem à tentação de confiar em pessoas antes de coletarem indícios para tal. Louise (Mackenzie Davies) e Ben (Scoot McNairy) estão em crise: ele descobriu a traição da esposa, e o casal parou de fazer sexo há meses. A sensação de esmasculação do marido se intensifica pelo desemprego, ou seja, a incapacidade de prover a subsistência da família. 

O terror extrapola a fronteira cultural, moral e ética entre o eu e o outro, o meu e o do outro. Os instantes mais assustadores de Não Fale o Mal ocorrem muito antes da conclusão sangrenta — eles nascem do desconforto pessoal diante de alguém muito diferente de mim.

Por isso, parece irresistível a este sujeito se aproximar de Paddy (James McAvoy) e Ciara (Aisling Franciosi) durante uma viagem. O casal à sua frente representa todo o erotismo, a espontaneidade e a diversão que faltam na vida dos protagonistas. Os jantares e noites com a dupla se revelam tão tentadores quanto o atalho na floresta para Chapeuzinho Vermelho, ou a casa feita de doces para João e Maria. Além disso, neste caso, a filha de um poderia brincar com o filho do outro. Este espelhamento entre eles (idades semelhantes dos adultos e das crianças) revela aos protagonistas uma versão mais excitante de si próprios.

O longa-metragem enfrenta o desafio considerável de apenas revelar elementos de terror no terço final da trama. De costume, obras do gênero garantem, desde a primeira cena, que o mal está à espreita. Ora, o diretor James Watkins, a partir do terror original dirigido por Christian Tafdrup em 2022, espera bastante até concretizar o “mal” do título em imagens. Antes disso, aposta numa profunda e crescente sensação de desconforto, ou ainda, de medo do desconhecido. Ora, do que vivem Paddy e Ciara? Por que o filho do casal é tão tímido? O que explica os ataques ocasionais de fúria do marido? De onde viria a diferença tão grande de idade entre ambos?

Para o circuito comercial, um trabalho focado em insinuações e construção de clima, ao invés de materialização do inimigo, representa uma ousadia considerável. Certo, o projeto dinamarquês-holandês mostrava-se mais corajoso em termos de nudez, insinuações eróticas e, sobretudo, no final assombroso. A versão norte-americana faz prova do recato habitual previsto a este público, trocando o desfecho grotesco por outro, também poderoso, embora muito mais clássico. O choque é atenuado, até porque, para quem assistiu a ambas produções, a segunda reserva poucas surpresas.

Mesmo assim, existe um domínio precioso da direção — em ambos os filmes, vale dizer — no que diz respeito ao misto de fascinação e rejeição em relação ao outro. Louise e Ben desejam tanto quanto desprezam seus anfitriões. Aceitam abusos e grosserias em nome da polidez, desta abertura que se espera de uma cultura distinta. Sim, eles agem de forma diferente, mas precisamos respeitar a decisão alheia, certo? Cada pai cuida da sua criança como achar melhor. Cada casal demonstra a sexualidade como preferir. Quem sou eu para julgar? Em briga de marido e mulher…

O terror extrapola, à enésima potência, esta fronteira cultural, moral e ética entre o eu e o outro, o meu e o do outro. Se vejo um adulto gritando com uma criança, devo intervir? Os instantes mais assustadores de Não Fale o Mal ocorrem muito antes da conclusão sangrenta — eles nascem do desconforto pessoal diante de alguém muito diferente de mim, efetuando coisas que eu não faria, e habituado a práticas que eu recuso. Em última instância, a obra lida com a recusa da alteridade, a violência de sair das nossas bolhas culturais e sociais. 

Por isso, a língua se torna um símbolo tão potente. O pequeno Ant (Dan Hough, um ator mirim bastante expressivo) teria um problema congênito na língua, impedindo-o de falar. Os males que corroem os protagonistas derivam igualmente da dificuldade de se expressar acerca dos desejos sexuais, o medo da rejeição, a dor da infidelidade. As provocações de Paddy surgem da boca, da língua, do ato de comer enquanto forma literal e figurada. Ele oferece carne a uma vegetariana, além de álcool fortíssimo a um sujeito pouco habituado a estas bebidas. Depois, simula sexo oral com a esposa em um restaurante. A força, neste filme, passa pela boca.

Certo, a produção está repleta de símbolos desajeitados, ou antecipações pouco produtivas no que diz respeito ao caráter dos personagens. Na estrada rumo à casa no campo, os protagonistas avistam o desenho de um homem nu, de pênis ereto, numa montanha. O que raios aquela ilustração faria ali? Quando Louise brinca num jantar: “Paddy, você é terrível!”, ele responde: “Você não viu nada”. É óbvio, para qualquer espectador habituado a narrativas fantásticas, que estes indícios prenunciam a extrapolação da sexualidade e a periculosidade real da figura interpretada por James McAvoy. 

Para o público norte-americano, a retenção do horror durante uma hora de narrativa seria aceitável contanto que promessas sejam feitas e cumpridas. “Eu sei que ainda não aconteceu nenhum conflito digno do terror, mas espera mais um pouquinho, ainda vai chegar”, sugere a narrativa. McAvoy, em especial, encarrega-se de uma monstruosidade gradativa que já utilizou em filmes como Fragmentado e Vidro. Não chega a ser uma composição surpreendente — o ator nunca foi particularmente sutil em seus trabalhos —, ainda que sirva de contraponto eficaz à passividade educada (e, por isso mesmo, perigosa) dos visitantes. A polidez, neste caso, se mostra letal. 

Ao final, o longa-metragem satisfaz e frustra pelos mesmos motivos. Felizmente, mudou os rumos da trama e propôs algo novo, pois quem gostaria de assistir ao exato filme já feito? Infelizmente, mudou os rumos da trama, já que os anteriores eram tão satisfatórios. Não Fale o Mal será sempre comparado, inevitavelmente, ao projeto original, ainda melhor e mais criativo. No entanto, revela ao espectador, de maneira consciente ou não, os custos e concessões necessárias para levar o cinema de autor ao terreno comercial em 2024. Watkins e a Blumhouse demonstram impressionante lucidez quanto ao desafio conceitual (e contradição inerente) que possuem em mãos no caso de um remake. Neste sentido, o resultado mostra-se inesperadamente bem-sucedido, ao contrário de tantas tentativas frustradas de refilmagens semelhantes.

Não Fale o Mal (2024)
6
Nota 6/10

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