Sariri (2024)

O diabo é feminino

título original (ano)
Sariri (2024)
país
Chile
gênero
Drama, Fantasia
duração
77 minutos
direção
Laura Donoso
elenco
Martina González, Catalina Ríos, Mauro Flores, Paola Lattus, Luis Jiménez, Claudio Navarro, Emilia Colivoro, Catalina Vásquez
visto em
18º CineBH (2024)

Em um vilarejo isolado nas montanhas, os homens vivem essencialmente do trabalho em minas. As mães, irmãs, esposas e filhas se encarregam dos afazeres domésticos e cuidados com as crianças. Cada vez que algum acidente afeta os trabalhadores, no entanto, elas serão as culpadas — afinal, é a presença feminina que faz a terra desabar. Se chegarem perto das grutas, provocam a morte de seus familiares. Curiosamente, elas possuem imenso poder, mas também uma culpa irreparável pelos membros decepados e falecimentos decorrentes do ofício.

Sariri parte do princípio que toda mulher carregaria a semente de um pecado original. Sua simples condição de gênero a tornaria uma espécie de bruxa, ou fera a ser domada. Visto que representa um perigo em lugares públicos, deve permanecer dentro de casa, para o bem de todos. Em paralelo, quando as meninas têm sua primeira menstruação, são enviadas sozinhas ao deserto, pagando penitência por sua impureza. Voltam apenas quando o sangue acaba — e algumas delas nunca voltam. As mães encorajam esta prática, por medo da revolta da natureza sobre seus homens. Para não sacrificar os maridos, pais e irmãos, é preciso arriscar a própria vida, e aquela das filhas.

Afinal, quem detém mais poder: esta mina, identificada com uma força masculina, ou a Diaba, como a chamam, associada à feminilidade? A cineasta Laura Donoso explora os limites desta fábula a respeito do patriarcado por meio de duas irmãs que confrontam o sistema: a pequena Sariri menstrua pela primeira vez, mas não deseja ir ao deserto; enquanto Dina, já casada, descobre-se grávida, e imagina maneiras de interromper a gestação. Ambas são obrigadas a seguir rituais e códigos de feminilidade, que lhes retiram o direito de escolha, e procuram formas de negais tais imposições.

Sariri caminha sobre esta linha tênue entre a poesia e o naturalismo. Seu devaneio ainda precisa manter os dois pés do chão, e a magia nunca desemboca numa loucura, numa radicalidade de qualquer forma.

O projeto busca associá-las a uma pureza bruta, associada à natureza selvagem. A irmã mais velha se diverte em imitar sons de animais, até ser ridicularizada pelo marido; enquanto a mais nova se depara com os olhos vermelhos da Diaba sem manifestar medo pela fera. De certo modo, ela se identifica com o animal, conforme atestam os fatos seguintes. O discurso não tarda a explicitar a associação entre as mulheres e a fera das minas, revelando as artimanhas da ideologia local, capazes de controlar o corpo das mulheres através do medo. 

Neste processo, é curioso que o drama fantástico escolha a menina pré-adolescente para o título do filme, posto que a irmã Dina possui a mesma importância à história, e talvez ocupe mais tempo de tela. Seguindo as duas histórias em paralelo, de maneira praticamente desconexa, a montagem demonstra dificuldade em interromper estes processos simultâneos. Durante a deambulação pelo solo árido e perigoso, a trama abandona Sariri para se voltar aos planos de aborto e fuga da outra. Quando cada linha narrativa ameaça atingir uma espécie de clímax, a tensão se interrompe pela necessidade de retornar ao segmento adjacente.

O resultado se engrandece quando recorre a metáforas lúdicas — o encontro com mulheres que permanecem no deserto, a desmistificação da Diaba, as luzes vermelhas, o sonho com a mina ocupada por mulheres. Donoso também toma a precaução de evitar um maniqueísmo flagrante: os homens, apesar de brutos e ignorantes, nunca se mostram particularmente perversos com as familiares — eles apenas reproduzem uma ordem que estimam ser natural. Todos os habitantes (homens e mulheres) são fruto do meio onde cresceram. A cidade é batizada, sem muita sutileza, de La Lágrima.

Em contrapartida, o roteiro explora pouco as associações entre mulheres, e as diferentes maneiras de driblar as imposições sociais. Dina e Sariri convertem-se em pioneiras de uma rebeldia, enquanto as demais respeitam cegamente as ordens — o que inclui o pressuposto do casamento infantil, assim que as meninas chegam à primeira menstruação. Existem um caráter de denúncia, óbvia até demais, a respeito do machismo e da misoginia, evitando que estes fenômenos se representem de formas mais criativas. 

Em se tratando de um vilarejo tão afastado dos conglomerados maiores (ninguém ali realizou o sonho de visitar à cidade), qualquer norma absurda e inesperada seria possível. No entanto, Donoso prefere aquelas realmente encontradas em diversas culturas ao redor do globo: o casamento precoce, a proibição do aborto, a percepção do sangue menstrual enquanto impureza. Sua fantasia possui certa limitação, afastando-se um pouco do real apenas para reproduzi-lo de maneira bastante fiel. A Diaba e as demais “magias” destas mulheres-bruxas jamais contaminam o restante da obra, que permanece linear e comportada em sua abordagem.

É certo que, no desfecho, o longa-metragem permite uma solução inesperada às duas heroínas, evitando a recompensa emocional prometida durante toda a projeção. Escolhe-se uma saída aberta, menos heroica e redentora. Deste modo, sugere que a sororidade possui seus limites, e múltiplas gerações de mulheres castradas de sua liberdade não se libertariam por completo pelo gesto irrefletido de duas representantes. Há limites para aquilo que o trabalho individual pode alcançar. 

Esta pode ser uma conclusão frustrante para alguns espectadores, porém, novamente, restringe a fantasia ao limite de certa plausibilidade. Sariri caminha o tempo inteiro sobre esta linha tênue entre a poesia e o naturalismo. Seu devaneio ainda precisa manter os dois pés do chão, e a magia nunca desemboca numa loucura, numa radicalidade de qualquer forma — estética, narrativa, de discurso. A diretora ainda pretende ser elegante, palatável ao gosto médio, e bastante clássica em seus gestos. 

Sariri (2024)
6
Nota 6/10

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