Maria Callas está morta. Esta biografia se inicia da maneira menos espetacular possível: com o corpo da protagonista estirado no chão, coberto por um lençol. Trata-se de uma escolha ousada de Pablo Larraín, a partir do roteiro de Steven Knight. Ao invés de se concentrar na construção de um ícone da música, com seus primeiros sucessos e a ascensão ao estrelato, prefere se voltar ao movimento seguinte: a perda da voz, o esquecimento pelo público, a degradação da saúde física e mental. Talvez já se saiba como as estrelas brilham, mas de que maneira elas se apagam?
Larraín não demonstra o menor prazer em descrevê-la como vítima, nem em espetacularizar sua decadência. Pelo contrário, enxerga neste período o ápice da complexidade da personagem. Trata-se de uma mulher famosíssima, apesar de abandonada pela nova geração; riquíssima, embora solitária, cercada apenas por um mordomo e uma cozinheira. Ela possui tudo e nada ao mesmo tempo. Até o seu bem mais precioso, a voz, se esvai. O que resta de uma cantora, sem o dom de cantar; e de uma diva, sem o reconhecimento público?
A escolha de Angelina Jolie para o papel soa, no mínimo, curiosa. Afinal, o rosto conhecidíssimo da atriz difere por completo dos traços da artista. Embora o diretor tenha optado por uma prótese de nariz em Kristen Stewart, para representar a Princesa Diana em Spencer, desta vez, deixa que a americana mantenha sua feição sem alterações prostéticas. Logo, é difícil não enxergar Jolie em cada plano. Por um lado, compreende-se que Callas foi muito mais do que uma silhueta específica. Por outro, separar a persona da atriz de sua personagem (por qualquer meio) teria sido fundamental.
O cineasta jamais dissocia Callas da impressão de um luxo vazio, uma opulência decadente. Trata-se de uma obra inteligente, na qual o respeito pela personagem nunca implica em adulação, nem condescendência.
Outro problema decorre da mímese do canto. Em nenhum momento se acredita que o vozeirão original da cantora saia da boca da protagonista, apesar dos esforços da atriz. Algumas cenas, inclusive, demonstram falta de sincronia entre a boca e os sons que deveriam sair dela. A situação se complica quando, em flashback, uma jovem atriz (representando Callas adolescente) canta para soldados nazistas. A bela interpretação transmite total verossimilhança no que diz respeito à performance vocal. Assim, aprofunda o abismo entre a música na juventude e sua versão desconexa e artificial na fase adulta.
Felizmente, o longa-metragem não se concentra nos melhores momentos de sua heroína. O canto determina as ações da cantora, porém, testemunhamos apenas fragmentos das performances no palco. O foco se encontra nas cenas domésticas, revelando a mulher por trás da fama. A compulsão por remédios, os delírios, a saúde frágil, a relação abusiva e codependente com seus funcionários se tornam os verdadeiros alvos deste retrato.
Larraín surpreende com boa dose de humor do absurdo, seja em gags (o piano movido de um lado para o outro, e nunca utilizado de fato), seja nas cenas esparsas de Callas escondendo comprimidos nos bolsos dos casacos, ou tentando impressionar a cozinheira que, desinteressada em seus dotes vocais, continua preparando uma omelete. A heroína demonstra ampla consciência de seu apego ao sucesso longínquo. “Não quero comer nada. Eu venho a este café para ser adorada”, ela explica aos garçons de um estabelecimento parisiense.
Neste aspecto, Jolie apresenta desempenho muito melhor do que sobre os palcos. Ela saboreia a construção de uma diva que, apesar de mandona, jamais eleva o tom da voz, nem cria cenas explosivas. Com um sorriso nos lábios e um cinismo profundo, ela responde aos jornalistas e dá ordens aos empregados. A protagonista repudia os cuidados excessivos dos dois, recusando-se a seguir recomendações médicas, no entanto, demonstra plena consciência de que eles o fazem para o seu bem. Existe algo tão crítico quanto terno nesta figura poderosa e infantilizada; de uma carência tão assumida que beira a humildade.
Os melhores papéis ficam com os coadjuvantes: Pierfrancesco Favino e Alba Rohrwacher estão excelentes como uma dupla de clowns, que escondem sua inteligência ao se passarem por meros admiradores de La Callas. (Os bobos da corte efetuavam algo semelhante com os reis, e ali residia seu verdadeiro poder). Nas cenas da cozinha, sempre ultracoloridas e enquadradas em perfeita simetria, podemos nos acreditar num filme de Wes Anderson. A perda de contato da heroína com a realidade facilita a transição para leves licenças em relação ao naturalismo.
A este propósito, o longa-metragem melhora cada vez que se permite fugir aos fatos, abraçando as representações de uma psique frágil. As entrevistas ao repórter imaginário (Kodi Smit-Mcphee), os passeios diante de um coral em Paris e as noites em bares, para encontrar fãs inexistentes, sugerem uma figura tão palpável quanto absurda, tão baseada em fatos quanto inventada. Estas liberdades estéticas e narrativas são fundamentais para que Larraín expresse sua visão pessoal da biografada, ao invés de elencar uma sucessão impessoal de acontecimentos.
O projeto também impressiona pelo cuidado com os enquadramentos (vide a cena da morte, reprisada na conclusão) e as movimentações pontuais de câmera, além da transição brusca entre o preto e branco contrastado e o colorido saturadíssimo das cenas em tempo presente. O cineasta jamais dissocia Callas dos espaços amplos, da impressão de um luxo vazio, uma opulência decadente. Trata-se de uma obra inteligente, na qual o respeito pela personagem nunca implica em adulação, nem condescendência.