O retorno de Corisco e Dadá (1996) aos cinemas em 2024 possui um forte significado diante do atual estado da produção, distribuição e exibição de filmes nacionais. O drama voltado aos dilemas humanos do cangaço, dirigido por Rosemberg Cariry, representa um dos marcos do cinema cearense, além de uma das primeiras ficções desenvolvidas no período da Retomada — ou seja, pós-paralisação devido ao fechamento da Embracine. Na época em que praticamente não se fazia filmes, por falta de apoio institucional, surgiu uma obra capaz de permanecer no tempo.
A restauração em 4K, produzida por Bárbara Cariry, com apoio da Cinemateca do MAM — RJ, garante que o longa-metragem resgate suas cores, seu som, e adquira a digitalização necessária à circulação em tempos atuais. Menos de trinta anos após o lançamento, a película se encontrava em certo estado de deterioração, de acordo com Petrus Cariry, ainda que o material estivesse particularmente bem cuidado. O que dizer, então, dos demais filmes de trinta anos atrás? Daqueles de cinquenta, setenta, oitenta anos atrás? Dos filmes guardados com menos esmero?
O projeto chama atenção à lacuna envolvendo a preservação de nosso cinema e nossa memória. Qualquer pesquisador em cinema brasileiro se depara com a abundância de filmes perdidos — desaparecidos, vinagrados, deteriorados de maneira irreversível, queimados em incêndios (o nitrato de celulose é altamente inflamável). Alguns nomes têm sido fundamentais a este processo de salvaguarda, seja aquele de instituições (Cinematecas Brasileira e do MAM), seja os de profissionais de intensa dedicação na área (Débora Butruce e William Plotnik, para citar alguns).
Corisco, Dadá e os outros representam o medo do caos junto à aspiração do caos. O sonho da anarquia e o perigo da anarquia.
Logo, a preservação de Corisco e Dadá significa, em simultâneo, um luxo e um direito, uma raridade e o mínimo necessário que se esperaria para uma obra desta importância — ou para qualquer obra, na verdade. Trata-se de sentimentos contraditórios. A família Cariry produz, dirige, edita, faz fotografia, preserva, organiza mostras de cinema. Não se pode esperar pela iniciativa de outras famílias tão bem articuladas artisticamente para se ocuparem de uma função que, evidentemente, deveria competir a órgãos como a Ancine, o Ministério da Cultura e demais instituições dedicadas ao audiovisual.
É igualmente especial que se trate de um filme a respeito do cangaço, eterno tema da cinematografia brasileira. Alguns países de audiovisual consolidado — como o nosso — possuem seus temas-chave, espécie de obsessão e ferida aberta. Trata-se daquele tópico que nos dói e que, por isso mesmo, continuamos a abordar, esmiuçar, numa elaboração terapêutica constante, ao mesmo tempo, individual e coletiva, íntima e pública. No nosso caso, temos o cangaço.
Falou-se muito dos “filmes de favela” enquanto subnúcleo brasileiro por definição, em virtude da repercussão descomunal de Cidade de Deus e Tropa de Elite. Vieram fortes e marcaram uma geração, além de uma ideologia muito específica, ambígua, potencialmente anunciadora do neoconservadorismo. Entretanto, esgotaram-se enquanto potências de produção. Os “filmes de sertão” enquanto mera lamentação geográfica e estética, voltada ao olhar internacional, com suas paisagens infinitas e rostos sofredores, também se esvaíram, junto à defesa paternalista da piedade para com os nossos.
Restam, no entanto, as obras de cangaço, que nunca paramos de produzir. Elas jamais alcançaram a popularidade dos filmes de favela, nem mesmo das comédias ridicularizando empregadas domésticas e porteiros (outro subgênero que sofreu forte baque pós-pandemia). Ora, deveriam os números de bilheteria nos servir como parâmetro de qualidade? Enfim, o cangaço persiste, em sua releitura pop, em sua vertente histórica, na reimaginação às vezes idealizada ou deturpada, oscilando entre heroísmo e banditismo, entre coragem e selvageria.
Os documentários mais recentes acerca do tema (os projetos de Wolney de Oliveira, em particular) revelam testemunhos de especialistas, comparando os cangaceiros a samurais, caubóis, piratas da terra, Robin Hood nacionais. São dignos de amor ou ódio? Enfrentaram os barões da terra, ou se uniram a eles para obter favores e dinheiro? Representam a indignação das classes populares ou, pelo contrário, uma descrença anárquica em qualquer forma organizada de política institucional?
Estes sujeitos serviam ao imaginário de riqueza (pelas roupas rebuscadas, os perfumes, os cabelos arrumados) e de pobreza (pois viviam escondidos, “como bichos” pelo sertão), reforçando um ideal do macho patriarcal e forte, mas também do homem desconstruído e vaidoso. Demonstravam profundo amor pelas companheiras, embora muitas delas, incluindo Dadá, tenham sido sequestradas e estupradas, entrando no cangaço contra a sua vontade. Rebelavam-se contra os fazendeiros, caso em que se aproximam dos revolucionários, embora pudessem ser subornados para assassinar pequenos trabalhadores, caso em que se assemelham a milicianos contemporâneos. Lampião era franzino, baixo, cego de um olho, manco de uma perna. Mesmo assim, representou o terror de sua época, um inimigo inalcançável do Estado (até ser alcançado).
O cangaço ajuda a compreender o Brasil contemporâneo, tão desesperado pelas melhorias do sistema quanto descrente no próprio sistema. O sentimento reacionário da antipolítica poderia se enxergar ali, enquanto a esquerda se projeta no sonho, cada vez mais distante, de destruir estruturas viciadas para reerguer uma sociedade progressista por sobre os escombros. (Neste momento, vêm à mente as palavras do diretor Rosemberg Cariry: o cangaço não tinha plano político). A violência do outro nos fascina: quando não nos sentimos contemplados pelas políticas de Estado, ainda que sejamos duramente sujeitos à sua aplicação, deparamo-nos com figuras que, de fato, rompiam por total com as leis. Corisco, Dadá e os outros representam o medo do caos junto à aspiração do caos. O sonho da anarquia e o perigo da anarquia.
Em paralelo, o longa-metragem retoma a ideia fundamental da arte enquanto ferramenta para entender o diferente, aquele que não age, não pensa nem existe como eu. Em outras palavras, o cinema enquanto proposta de empatia, de diálogo, de representação da diferença. Não, o filme dificilmente foi pensado para uma plateia de cangaceiros e seus descendentes. Somos nós, cidadãos “comuns”, em nossa maioria urbanos, que observamos este sertão justiceiro e carniceiro, livre (de regras) e preso (à inevitável morte precoce) — um encontro circular entre utopia e distopia.
Encontramo-nos em momento marcado por profunda dificuldade de dialogar com formas de pensamento distintos. Neste processo de infantilização dos sentidos e de antiintelectualismo promovido pela extrema-direita, representar o outro equivale a defendê-lo. Se eu revelo um comportamento condenável nas telas do cinema, estou encorajando as pessoas a reproduzirem estes gestos. Some o pressuposto do senso crítico, assim como a possibilidade de retratar alguém em sua complexidade e contradição. Para os defensores da arte unívoca, o cinema deve existir somente para o tema positivo (Deus, família, tradição), enquanto se relega o indesejado ao tabu, ao silêncio. Tentam aproximar a arte da escola, da igreja e do tribunal.
Ora, Corisco e Dadá demonstra verdadeira fascinação pelas relações de gênero e de classe inerentes às desigualdades brasileiras. Admira e repudia estes personagens, brilhantemente interpretados por Chico Diaz e Dira Paes. Permite que sejam humanos e deuses, carinhosos e perversos. Sobretudo, não diz ao espectador o que deveria pensar a respeito dos dois. Trata-se da arte antipedagógica por definição, capaz de respeitar a inteligência do público. Os protagonistas não servem de exemplo, nem de anti-exemplo. Fogem ao que se veio a chamar de polarização política.
Em seu aspecto polissêmico, a obra de Rosemberg Cariry representa um cinema tão recente (o que são trinta anos em uma cinematografia nacional?) quanto antigo (posto que carente de restauração). Ela soa atual em temas e provocações, porém distante em sua forma de comunicação pré-pop, pré-cultura do espetáculo. Nem o cangaço messiânico de Deus e o Diabo na Terra do Sol, nem a bandidagem pulsante de Cangaço Novo. Corisco e Dadá representa uma tentativa de conciliar o Brasil consigo mesmo, o cinema consigo mesmo. O retorno às salas de cinema apenas reforça a vocação de uma forma de cinema que insiste em pensar sobre si própria.