Entre os dias 22 e 26 de novembro, a Mostra de Cinema de Gostoso recebe sua 11ª edição, na Praia do Maceió, São Miguel do Gostoso (RN). O evento cresceu muito em termos de repercussão e estrutura: além do famoso cinema a céu aberto para mais de 600 pessoas, permitindo assistir aos filmes com o pé na areia; os idealizadores e diretores Eugênio Puppo e Matheus Sundfeld trouxeram um segundo espaço fechado, a Sala Petrobrás, permitindo a organização de exibições na parte da tarde — onde são projetados, inclusive, filmes de classificação etária não permitida à sessão aberta.
Além disso, a equipe de curadoria se fortaleceu em 2024, com a entrada de três pesquisadoras do audiovisual: Mariana Souza, Janaína Oliveira e Carine Fiúza. Entre debates, seminários e sessões lotadas, com a presença de diversos frequentadores de cidades vizinhas (e mesmo de Estados distantes), Puppo e Sundfeld conversaram com o Meio Amargo a respeito destas transformações:
Este ano, vocês passaram de dois curadores para cinco pessoas no total, incluindo Mariana Souza, Janaína Oliveira e Carine Fiúza. Como foi este processo?
Eugênio Puppo: Bom, a gente teve esse quiproquó o ano passado, né? [Em referência às falas racistas de um convidado]. A gente já estava num processo de questionar alguns aspectos da Mostra. Por ser um festival de filmes brasileiros atuais e independentes, a gente não podia se descuidar. Além disso, Matheus e eu já estávamos vendo 900 filmes no processo de curadoria. Isso sem falar em distribuidoras que a gente acompanha —neste caso, ficamos de olho nos projetos em finalização, e então pedimos para ver os filmes. No final, posso dizer que, grosso modo, a gente estava vendo mil filmes por edição. Não é sustentável. Nós temos uma equipe pequena, apesar de ser uma produtora extremamente ativa, que faz longas, curtas e séries. Começamos então a pensar em mais pessoas, e lembrei imediatamente da Janaína, que eu conheci na Mostra da Boca do Lixo. Ela foi a primeira que eu chamei. Depois, entramos em contato com a APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro). Fizemos algumas reuniões e gostamos muito da Mariana Souza e da Carine Fiúza. O ponto de vista delas se encaixava muito com o nosso.
Matheus Sundfeld: Foi um processo enriquecedor. Para fazer um festival, a gente tem que mover algumas montanhas. Nesses dez primeiros anos, o esforço maior era de fazer o festival acontecer, e não tinha tanto espaço para pensar em aumentar a equipe de curadoria. Mas deu certo este ano, e foi uma experiência ótima, trazendo novos olhares. Antes, eram só dois homens fazendo a curadoria — e dois homens brancos.
Agora, a presença branca e masculina se tornou minoritária na curadoria.
Eugênio Puppo: A gente acha ótimo sermos minoria, até porque, se você tem um nível bom de debate dos filmes, pouco importa se é curador ou curadora, se é branco ou se é preto. Mas se você olhar a programação dos anos passados, a gente sempre se preocupou muito com representatividade e diversidade. Isso já estava presente todos os anos. As meninas vieram para engrandecer isso. Elas levantaram muitas questões em relação a esses filmes, e então, o debate cresceu. Por fim, a gente ficou mais seguro das nossas escolhas.
Matheus Sundfeld: Elas captaram bem rápido o perfil do festival, mesmo sem terem vindo a Gostoso antes. Tenho certeza de que, no ano que vem, vai ser melhor ainda, depois da experiência este ano.
Acreditam que esta edição tenha trazido alguma mudança no perfil dos filmes selecionados, ou tenha destacado alguma temática que atravesse as sessões?
Matheus Sundfeld: Para a maioria dos filmes dessa seleção, a gente fica dependente das produções que recebemos ao longo do ano. Varia muito de um ano para o outro. Conforme o processo de curadoria vai avançando, a gente enxerga ali algumas temáticas, algumas abordagens que produzem sentido dentro da programação. A essência se manteve: é importante pensar no diálogo com a população na sala de cinema ao ar livre. Este é um ponto central, porque nossa principal sala é aberta ao público, né? Então isso implica em filmes com uma certa classificação indicativa.
O diálogo com o público local tem sido impressionante. Não sei se podemos falar em um público recorde, mas as filas para as sessões são gigantescas, e todas as sessões estiveram cheias.
Eugênio Puppo: Em 2023, já foi a mesma coisa. Algumas pessoas ficaram bravas quando viram a área reservada para jornalistas e convidados, e não podiam acessar. Algumas filas subiam a rua inteira.
Matheus Sundfeld: Mas é curioso notar que São Miguel do Gostoso abraçou a Mostra desde a primeira edição. É claro que a gente tinha aquele receio no início, porque as pessoas aqui não estão habituadas a assistirem a filmes em salas de cinema. Basicamente, assistem na televisão, e são filmes estrangeiros. Esse era o perfil do público de Gostoso. Então foi um pouco desafiador, pensando se as pessoas iriam prestigiar. Mas desde a primeira edição, todas as sessões foram muito cheias. Isso vem desse trabalho de base, envolvendo os jovens da cidade.
Eugênio Puppo: Ontem, no domingo, tinha muita gente de Caicó, de Mossoró. Várias pessoas foram embora porque precisavam trabalhar na segunda-feira. Mesmo assim, a sala tava lotada. A gente percebe diversos espectadores que vêm de Santa Catarina, do Pará, por exemplo. Nos últimos quatro, cinco anos, tem crescido o número de pessoas que vêm para o festival, especificamente. É claro que também visitam Pipa e outros destinos ao redor, mas vêm para a Mostra em particular. Para a gente, isso é incrível, porque mostra o reconhecimento e a abertura para outros Estados. As pessoas vêm porque escutam falar, e querem conhecer essa sala a céu aberto, vendo as estrelas. Tem que ter essa energia: para a gente, a Mostra precisa ser muito afetiva. A gente não quer uma correria protocolar. É outro ritmo.
A Mostra de Gostoso nunca exigiu ineditismo para a seleção, mas abriu com um filme inédito este ano, o documentário Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí. É uma tendência, procurar mais títulos inéditos?
Eugênio Puppo: A gente realmente não faz questão de filme inéditos. O que interessa para a gente é a qualidade dos filmes e a relação entre o conjunto de filmes, a coerência das sessões. Alguns filmes estão cotados para um festival enquanto participam da seleção de outro, e correm o risco de perder o ineditismo no processo. Para a gente, isso é esquisito, sinceramente. É claro que a gente adoraria ter filmes inéditos, mas isso não é pré-requisito. Não é o que nos impede de passar um filme, pelo contrário. Além disso, sinto que os festivais têm muito apego à fidelidade. São os mesmos jornalistas, e às vezes passam um filme por ser de tal diretor, que já é amigo. Mas a Mostra não tem isso. Por exemplo, recebemos o filme de um realizador, e a gente tinha passado já dois, três longas dele. Mas o filme não entrou dessa vez — não por ser ruim, mas não se encaixava na seleção. Também estamos fazendo uma renovação dos jornalistas convidados. Não dá para trazer todo mundo para cá; a passagem é muito cara. Como faz para convidar 80, 90 pessoas? Então apostamos na renovação.
Pensando o futuro do festival, quais seriam os próximos passos: expansão, consolidação? Mais filmes, nova sala de cinema?
Eugênio Puppo: A gente sempre discute muito isso. No sábado, por exemplo, tivemos 2.500 mil pessoas. A Mostra não é um show de música, mas também precisa ter limites por questões técnicas. Por exemplo, a gente quer colocar um reforço de som, porque ficam muitas pessoas atrás das barreiras da sala. A gente faz um desenho do espaço para que a tela seja vista de qualquer lugar da praia. Então seria impotante botar um reforço para que as pessoas consigam ouvir ainda melhor o som do filme, já que a imagem está lá, grandona, e as pessoas conseguem ver. Mas fica o medo para o ano que vem, com o boca-a-boca. As matérias são publicadas na imprensa, e vão despertando o interesse do público, né? Não vejo muito como aumentar para além da estrutura. É bom manter este número de 30 filmes, até 35 filmes. A gente tinha uma mostra infantil, e estamos pensando em retomar, porque é uma iniciativa importante. No caso da mostra Panorama, pensamos em dobrar a sala de tamanho. São 115 lugares lá dentro. Mas se a gente dobra o tamanho da Panorama, dobra os custos, você não tem ideia. Colocar vários ar-condicionados custa uma pequena fortuna.
Matheus Sundfeld: Ou mesmo fazer alguma um segundo horário de sessão, perto da hora do almoço. Talvez dê para repetir o filme do dia anterior, para as pessoas que não conseguiram ver antes. Mas, realmente, a sala ao ar livre tem um limite técnico de tamanho, pensando na distância projetor-tela, e em manter a qualidade do som. Então acho que, se expandir, a gente pode perder em alguns pontos bem importantes para a qualidade.
Eugênio Puppo: A gente não pode perder o foco, que são os bons filmes, boa qualidade de projeção, boa qualidade de som. O objetivo não é de fazer eventos. Já recebemos vários convites para levar a Mostra a outros lugares, mas não é o nosso foco.
É a vantagem de ter dois cineastas como diretores do festival.
Eugênio Puppo: Imagina ter um festival com uma decoração simpática, mas uma projeção ruim? Não tem sentido. Ou ter uma curadoria ótima, mas os filmes passarem de qualquer jeito? Perde o sentido. E perde o sentido, também, se a gente não tiver o trabalho de formação com coletivo Nós do Audiovisual. São muitos filmes, muitas oficinas, e já tivemos 153 jovens formados. Cada turma fica três anos, então isso muda a vida dos alunos. Todo mundo está ganhando a sua grana, pagando as suas contas, sustentando família, construindo casa.
Matheus Sundfeld: Esse ano, o coletivo realmente deu alguns passos à frente. Eles ganharam cinco editais da Paulo Gustavo. Mas também ganharam uma linha do edital estadual para desenvolver o primeiro longa-metragem, que vai ser filmado no ano que vem.
Eugênio Puppo: É um projeto nosso, que deixamos com eles, enquanto primeiro longa documental. Mas a gente vai acompanhar bem de perto, como se nós fôssemos nós os oficineiros. É um projeto inspirado nos métodos do Eduardo Coutinho, e os alunos adoram Eduardo Coutinho. Vai ser um ótimo primeiro filme.