É interessante pensar que talvez a personagem principal de Kasa Branca seja a Dona Almerinda (Teca Pereira). A trama gira inteira em torno da senhora idosa, vítima de Alzheimer, presa a uma cadeira de rodas, balbuciando poucas palavras. Por causa da amada avó, o jovem Dé (Big Jaum) não procura emprego — afinal, quem cuidaria dela durante a sua ausência? Os melhores amigos Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco) conseguem dinheiro para os remédios dela, e carregam-na no colo para onde for preciso.
A ciranda de cuidados vai além: amigos, vizinhos e conhecidos são solicitados para ajudar financeiramente, ou fornecer atenção e carinho à mulher tão presente quanto ausente. Mesmo um famoso rapper aceita se apresentar na Kasa Branca do título, visando reunir recursos para a mulher. Levam Dona Almerinda no alto de um morro, para que ela admire a vista. Invadem um parque de diversões, arriscando prisão ou outras sanções, para ela se recordar de um namorado do passado, encontrado naquele local.
O longa-metragem tem como principal virtude a capacidade de enxergar nas comunidades cariocas um espaço de afeto compartilhado — uma dinâmica de bairro, de coletividade ainda forte, apesar dos percalços (ou talvez graças a eles). Os amigos e vizinhos constituem a família de Dé, sendo movidos não por um altruísmo excepcional (o roteiro evita enxergar nestes gestos um valor moral), mas por um senso quase automático de praticidade: todos ajudam a Dé porque sabem que, caso necessitassem, seriam prontamente atendidos também. “É preciso um vilarejo para criar uma criança”, dizia o ditado. Para cuidar de um idoso, também.
O diretor Luciano Vidigal dá um passo importante rumo à desconstrução do imaginário perverso acerca das comunidades. Ele olha para seus personagens e sua comunidade de modo encantador.
Assim, o diretor Luciano Vidigal dá um passo importante rumo à desconstrução do imaginário perverso acerca das comunidades. O cinema brasileiro aprendeu a fetichizá-las enquanto palco de espetáculo: tiroteios, gangues, policiais, BOPE, traficantes, balas perdidas, perseguições, sangue, grito, correria. Cidade de Deus, Tropa de Elite e similares adoravam transformar a desigualdade em entretenimento para as massas — “Tiro na mão ou tiro no pé?”. Paira esta concepção de que favelas são locais de bandidos perigosos, negócios escusos, pessoas soturnas e pouco confiáveis.
Ora, Kasa Branca constitui um filme solar. Isso não significa que ele minimiza os percalços financeiros e estruturais: estão presentes a polícia desonesta e os milicianos ameaçadores, além da senhora que cobra o aluguel atrasado, recebendo o apelido carinhoso de Bruxa de Blair. No entanto, a vida segue apesar destes conflitos. Nenhum personagem tem sua vida definida pelos obstáculos, e estes elementos tampouco constituem o motor da narrativa. A trama se preocupa com a saúde de Almerinda, a melancolia de Dé, a amizade entre os três amigos. As comunidades se tornam, em primeiro lugar, uma estrutura afetiva.
Neste caminho, existe espaço para diversidade e discordâncias, evitando perceber os moradores enquanto subjetividades indistintas. Alguns personagens possuem mais recursos (a mãe de Adrianim é dona de uma academia, e vive numa bela casa), enquanto outros ocupam construções sem acabamento. Os relacionamentos cis-hétero se misturam com relações queer despojadas e naturalistas — praticamente um não-conflito por definição. Alguns moradores saem da região porque ascendem socialmente, enquanto outros preferem permanecer ali.
A questão estrutural da pobreza e do racismo permanece crônica, porém existe uma dinâmica de vidas que vêm e vão, pessoas que chegam e partem, o que inclui um imigrante africano bem entrosado com a vizinhança. O grafite com o rosto de Dona Almerinda na fachada da casa, ao final da trama, despertou algumas lágrimas na sala de cinema da Mostra de Gostoso, pela noção de prioridades e cuidados destes jovens. Kasa Branca acredita na sua juventude periférica, fugindo tanto às ingenuidades quanto ao caráter salvacionista do cinema burguês. Aposta nestes meninos e meninas porque os conhece — há notável sentimento de vivência desta realidade por parte do diretor.
Para ajudar, as atuações são homogêneas, sustentando um aspecto cru na composição (no sentido de pouco técnico) que, em um filme tão realista, porta bons frutos. O jeito acanhado de uns, ou certo desconforto cênico de outro, pode ser lido enquanto introspecção, vergonha do protagonista com sua própria imagem, ou tristeza pela ex-namorada distante. Vidigal dispensa clichês óbvios a exemplo da redenção de Adrianim pelo amor romântico; do empoderamento de Dé graças ao amor familiar; da conquista súbita da fama por Talita (Gi Fernandes). Não há soluções milagrosas, nem otimismo fácil.
O projeto se comunica bem com o público médio graças a um humor generoso, capaz de rir das situações, ao invés dos personagens. Chega a ser um alívio encontrar uma obra popular avessa às piadas de gordo diante do protagonista obeso; às tiradas machistas voltadas a Roberta Rodrigues, ou às chacotas etaristas diante da mulher inválida. Rimos do absurdo de algumas circunstâncias, dos desencontros entre personagens, das traquinagens dos garotos que, apesar de lidarem com obrigações adultas, ainda conservam traços adolescentes (vide a tinta espalhada na cara).
Vidigal navega muitíssimo bem pelo território pantanoso dos “filmes do meio”. Busca uma linguagem de fácil identificação, o que não significa incorrer numa caricatura, nem na paródia (lição importante para 80% das comédias brasileiras em moldes televisivos). Nem obra hermética para festivais estrangeiros, nem comédia pastelão com gente que tropeça e cai; Kasa Branca acredita na possibilidade de instigar tanto a percepção dos críticos a respeito do que possa ser uma linguagem popular; quanto do público de shopping centers sobre a sofisticação de linguagem.
Somos extremamente carentes de filmes com tamanho cuidado humano e narrativo. Mesmo momentos fracos ou questionáveis serão excepcionais — a ausência da família de Martins, Babu Santana eternamente preso a uma laje. Os criadores sabem onde se focar: nos gestos potentes contra a intolerância religiosa, na autonomia feminina para escolher o melhor caminho para si mesma, numa amizade masculina segura, permitindo abraços, ternuras, encontros. O diretor olha para seus personagens e sua comunidade de modo encantador.