Neste documentário, Marcelo Gomes decide filmar o infilmável: os sonhos. Como representar as imagens que criamos todas as noites, durante o repouso? Que função elas possuem em nossas vidas, e quais relações estabelecem com as imagens que criamos voluntariamente (caso do cinema e de outras artes pictóricas)? De que maneira explicar o esquecimento destas experiências na manhã seguinte? Devemos nos preocupar quando não nos lembramos nunca daquilo que elaboramos de maneira inconsciente? Por que a ciência ainda conhece tão pouco a respeito deste fenômeno?
O cineasta poderia efetuar uma investigação puramente fatual, recorrendo a teses e dados. Afinal, ele tem como protagonista o neurocientista Sidarta Ribeiro, que se dedica há décadas a estas questões. Criaturas da Mente ameaça enveredar por este caminho ao mostrar personagens em suas macas, com eletrodos presos à cabeça, permitindo mapear a atividade neuronal durante o sono. Discute-se a investigação a respeito do sonho dos polvos, acompanhada da pergunta-chave: com o que sonhariam estes animais?
No entanto, a preocupação meramente curiosa ou exótica permanece em segundo plano. Felizmente, o caráter de um possível Globo Repórter se dissipa — o filme nunca realmente comprova que os polvos sejam capazes de sonhar, e tampouco apresenta os resultados estatísticos daqueles estudos todos. A ciência se torna um meio, ou mesmo um ponto de partida — jamais uma finalidade. Privilegia-se a dimensão humana, confessional, tão sincera quanto minimalista em sua abordagem: Gomes visa falar de seus próprios sonhos, ou da ausência dos mesmos durante a pandemia.
Para estudar os sonhos, o diretor valoriza os conhecimentos eruditos e populares, terrenos e transcendentais, enquanto peças igualmente importantes na construção de um quebra-cabeça único.
O autor também ocupa as funções de narrador em off e de apresentador desta jornada, além de constituir um dos personagens principais, junto a Sidarta. Coloca-se em cena em sua primeira experiência com a ayahuasca; revela a conversa com a mãe via Zoom e os bate-papos com o amigo cientista. Expõe-se de maneira íntima ao explicar que deixou de sonhar durante o isolamento, por isso, preocupa-se com a situação irônica de um cineasta incapaz de produzir imagens (durante o sono, pelo menos). Ele chega inclusive a compartilhar um sonho antigo, no qual anda contra a multidão, apressado, até se encontrar dentro de um cinema vazio.
Mesmo os encontros com especialistas se esforçam para retirar o caráter pomposo de uma “versão definitiva” dos fatos. Gomes, Sidarta Ribeiro, Ailton Krenak, Mãe Beth de Oxum e demais participantes conversam com evidente conhecimento do tema, porém em tom descontraído. Trocam ideias no jardim das casas, ou em meio à natureza, descalços. Riem, brincam, tais quais amigos passando um fim de semana juntos. O tema interessa profundamente a estas pessoas, no entanto, permite certa leveza e lirismo na abordagem.
Tal despojamento se transmite à estética do longa-metragem na totalidade. O autor decide representar o invisível através de recursos bastante tradicionais: vinhetas animadas de flashes luminosos e formas abstratas; uma filmagem de si próprio caminhando na multidão (em referência ao sonho descrito acima); imagens de arquivo do cinema mudo. Já as entrevistas transparecem esmero estético, ainda que se distanciem da procura por uma elegância autoral, ou alguma forma de composição vaidosa que chame atenção à astúcia do cineasta.
Trata-se de uma condução mais funcional do que arriscada ou inventiva. Os curtos trechos em animação servem sobretudo de transição entre cenas e temas, e não exercem um impacto significativo nas imagens a seguir. A reconstrução em live action do sonho também se limita à condição de exemplo referencial da descrição sonora — Gomes não se confronta à dificuldade de filmar sensações ou outros elementos menos imagéticos do que um sujeito caminhando em meio aos pedestres. Ele prefere procurar formas de compreensão análogas, seja nas religiões de matriz africana, seja no Carnaval.
Criaturas da Mente estabelece uma comunicação promissora entre os sonhos e a folia do Carnaval, enquanto experiências de transe e perda (consciente ou não) da razão, em busca do êxtase. Algo semelhante ocorre nos rituais da umbanda e do candomblé. Mesmo assim, tanto as captações da folia em Olinda quanto aquelas pertencentes ao domínio dos orixás se revelam curtas, tímidas e voluntariamente repetidas (a aceleração da câmera passando entre os foliões, por exemplo).
Neste percurso, o roteiro produz poucos atritos entre falas, ou discordâncias frontais na compreensão dos sonhos. Quando Sidarta se encontra com um amigo cético, ambos se esforçam para encontrar um rápido terreno de compreensão mútua. Partindo de campos tão diversos quanto a ciência, a religião e a arte, Gomes procura menos as singularidades de cada domínio do que seus pontos de convergência imediatos — a capacidade de sonhar, de acreditar em algo para além da realidade imediata, de se comunicar com alguma presença que os olhos não veem.
A aproximação tão carinhosa quanto vasta do tema se traduz na sequência de frases retóricas oferecidas pelo cineasta, na condição de narrador em off: “Será que vou perder a capacidade de resolver problemas práticos do cotidiano sem meus sonhos?”, “O que será o termo ‘criaturas da mente’?”, “Seria talvez o processo de criação artística um exercício de transcendência?”. O cineasta não busca fornecer respostas, mas elaborar boas perguntas, deixando que o espectador as rumine sozinho, após a sessão.
No final, Criaturas da Mente constitui uma porta de entrada para um tema complexo, que ele não cogita dissecar de fato. Encontra nesta simplicidade assumida tanto as suas qualidades (a humildade, a sinceridade, a humanização da ciência) quanto as suas fraquezas (o aprofundamento limitado, os baixos riscos estéticos). Terminamos a sessão conhecendo pouco a respeito da função dos sonhos, do valor do esquecimento, das acepções destas imagens para os povos originários e para os pesquisadores da biologia e da psicologia.
Em contrapartida, entendemos se tratar de uma manifestação essencial aos seres humanos, convertida em matéria-prima para os profissionais que lidam com o outro, a diferença, as formas de expressão. Neste aspecto, une as formas de saber mais variadas, percebidas enquanto complementares e solidárias. Em tempos de dificuldade de diálogo social, marcada por intolerância religiosa e anticiência conservadora, o diretor valoriza os conhecimentos eruditos e populares, terrenos e transcendentais, enquanto peças igualmente importantes na construção de um quebra-cabeça único. Sua obra se torna uma singela proposta de compreensão do mundo através da união entre diferenças.