A morte ronda este drama brasiliense. Alex (Wellington Abreu) volta às terras de sua origem quando descobre que o pai está doente. O próprio herói trabalha num abatedouro, além de se confrontar a rituais envolvendo o sacrifício em nome da comunicação com o além. Enquanto isso, cascavéis rondam a região, e os capangas da fazenda atiram em intrusos que pegam água do rio. Na fábrica, alguns homens trabalham com máquinas pesadas, capazes de decepar um dedo, e outros caem dentro de silos, sufocando com os grãos. Nos plantios, uma garota espalha agrotóxicos em abundância.
O diretor Guilherme Bacalhao prenuncia alguma(s) morte(s), consolidando um destino inevitável. O espectador mergulha na aventura do cantor fracassado, tentando a todo custo emplacar as suas canções, com a ciência de que o eventual sucesso lhe cobrará um preço caro — impressão favorecida pelo título. Este homem recorre a crendices e superstições: o guizo de cascavel no interior da viola; a mão enfiada num buraco à noite, perto da igreja; os dizeres específicos para suplicar a forças transcendentais que o ajudem. Álcool e outras oferendas integram o processo.
O aspecto mais interessante de Pacto da Viola reside na conjunção entre inúmeras crenças de um Brasil multicultural e sincrético. Estratégias cristãs e pagãs; suplícios verbais ou ações concretas são utilizadas por personagens que lidam diariamente com a finitude, o invisível, o imponderável. Ao invés de se voltar aos praticantes de uma crença específica, o autor prefere certo amálgama orgânico de tradições — da Folia em Urucuia às tradicionais histórias de pactos entre sertanejos com o diabo. Vai de Fausto à literatura de cordel; do erudito ao popular.
O aspecto mais interessante de Pacto da Viola reside na conjunção entre inúmeras crenças de um Brasil multicultural e sincrético. Além disso, contextualiza a narrativa num debate sobre tradição e modernidade.
Além disso, insiste em contextualizar a narrativa num debate sobre tradição e modernidade. Enquanto o pai e os tios de Alex representam o predomínio da fé, a prima Joice (Gabriela Correa) ilustra a tendência individualista e cética das novas gerações. Ela descarta as práticas da geração anterior enquanto bobagens; prefere a música eletrônica às modas de viola; e dispersa alegremente os produtos químicos nas plantas. Despreza o passado, enquanto não demonstra interesse particular pelo futuro. Parece viver num eterno agora, aparecendo convenientemente para Alex em três ou quatro cenas, quando o roteiro precisa de algum conflito.
Felizmente, a atriz transparece o conforto com os diálogos, além de um corpo despojado, sem vaidades, que beneficiam a interação com o protagonista. Abreu, no lugar do herói sisudo e calado, minimiza expressões a ponto de tornar o espectador um tanto misterioso para o espectador. É difícil saber exatamente o que ele sente pelo pai doente e pela mãe falecida, ou de que maneira expressa seus sentimentos através da música — escutamos apenas uma canção, e o roteiro elimina cenas de composição, ensaio, ou ainda de apreciação musical por parte do protagonista. Para um homem tão obstinado em ascender na carreira, ele soa curiosamente indiferente à música e às sonoridades em geral.
Esta percepção poderia se estender ao longa-metragem em sua totalidade. Pacto da Viola ocupa o terreno do quase, do prestes a, da insinuação, da iminência. Ele flerta com o terror e o cinema de gênero (alguns planos subjetivos de dentro dos arbustos simulam o olhar do diabo), embora nunca mergulhe de fato nas possibilidades fantástica da fuga ao real. Ameaça enveredar pelo grotesco ou pela concretização do mal, embora se atenha à sobriedade e placidez, preocupada em agradar o espectador e manter o tom linear.
Ao mesmo tempo, o pressuposto do acordo com o Tinhoso implicaria em consequências morais e éticas importantes a Alex. Afinal, o rapaz ambicioso receberia o dom da música ao se alinhar às forças malignas. Mesmo assim, nenhum ganho decorre destes laços escusos. A própria comunicação com esta força soa módica, minimalista — com o salto temporal ao dia seguinte, o espectador pode se questionar se algum pacto foi estabelecido de fato. O humor jocoso (a sequência de piada com diversos nomes para o diabo) atenua a força de uma entidade na qual os personagens supostamente acreditam.
O roteiro prepara o espectador desde as primeiras cenas para a Folia, que deveria ocupar um papel fundamental no laço entre pai e filho. Entretanto, a festa não se concretiza aos nossos olhos. Nota-se a escolha pela atenuação de forças e de catarses — vide o pacto demoníaco desprovido de erotismo, de fervor, angústia, medo, grotesco ou sublime. Voluntariamente ou não, Bacalhao preserva sua fábula num registro melancólico. Obtém um resultado coeso, sem dúvida, e ciente do escopo de suas ambições. O diretor não dá passos maiores do que a perna — talvez os dê até menores do que as pernas comportariam.
Resta uma obra singela, e consciente de sê-lo, acerca da maneira cotidiana como as crenças se introduzem nas nossas vidas, sobretudo no dito “Brasil profundo”, longe do cinismo das metrópoles. O autor se interessa pela religião, pela música e pelo sobrenatural enquanto ideias, em detrimento de uma possibilidade audiovisual de fato. Pode frustrar quem esperaria destes temas uma abordagem de maior ousadia e verve; ou contentar muitos outros para quem o horror funciona melhor enquanto menção e conceito. O espectador que imagine, por conta própria, tantas lacunas propositadamente ocultadas na jornada de Alex.