Uma Montanha em Movimento (2025)

Anatomia do eu

título original (ano)
Uma Montanha em Movimento (2025)
país
Brasil
linguagem
Documentário, Experimental
duração
115 minutos
direção
Caetano Gotardo
com
Caetano Gotardo, Gabriel Fausztino, Larissa Siqueira, Louise Belmonte, Luana Vitra, Marina Tranjan, Mawusi Tulani, Renato Sassone, Salloma Salomão
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Poucos diretores são tão propícios para se pensar a autoimagem no cinema brasileiro contemporâneo quanto Caetano Gotardo. Em Uma Montanha em Movimento, por exemplo, o artista se encarrega da direção, da montagem e do roteiro (este último, junto de alguns colaboradores). Ele interpreta o personagem principal, ocupando a maioria das cenas. Também cuida da narração em off. Mostra-se nu, dançando, chorando — algo que nenhum outro personagem tem a oportunidade de fazer. Ele retorna para novas confissões, enquanto os demais personagens ganham uma única cena cada. Este é um filme de Caetano.

A escolha pode despertar certo incômodo, ou servir de provocação para quem concebe o cinema enquanto janela para retratar o outro, o mundo, a diferença. A exposição reiterada de si próprio faz com que o autor soe, ao mesmo tempo, egocêntrico (por ocupar o palco) e humilde (por se revelar em contexto de vulnerabilidade). Elogia-se ou ataca-se o dispositivo por motivos semelhantes: este cinema do eu demonstra um diretor ciente de seu lugar de fala, abordando o universo que conhece melhor e sobre o qual possui total propriedade; mas também um autor avesso à experiência de se colocar no lugar do outro. 

Logo, falamos de alguém ocupando o espaço de criador e criatura, de observador e observado. O cineasta desenvolve a obra, mas também encarna a própria obra. Figuras da pop art haviam elevado essas tensões à enésima potência, como no caso de Andy Warhol. Muitas décadas depois, o cinema digital de baixa qualidade — o longa-metragem é filmado com um celular comum — permite a elaboração de um projeto pessoal, baratíssimo, assumindo a pixelização da imagem e o som pouco elaborado enquanto parte da proposta. Para um cinema da intimidade, uma estética da intimidade. Uma grande equipe com refletores e booms não teria espaço neste contexto.

Caetano Gotardo expressa muito de sua visão de mundo através desta gestualidade frenética, abstrata, um tanto violenta consigo próprio. A preocupação não se encontra nos belos enquadramentos, luzes e som cuidadosamente mixados — pelo contrário.

Gotardo discorre sobretudo a respeito de um relacionamento anterior, em 2023, quando desejava filmar o namorado dançando, mas não obteve autorização dele para este registro. Descreve, então, como seria a imagem sonhada, e jamais concretizada. Na ausência desta prova da memória, ficcionaliza-a à sua maneira: o próprio cineasta apresenta danças e performances em frente à câmera, e compartilha com o espectador, na forma de um trunfo, o registro do novo namorado dançando, e mesmo dormindo, como sempre quis gravar. O afeto, para o artista, passa por esta forma de apreensão do corpo via imagem. Se não possuo a sua imagem, não o possuo por completo.

A princípio, as homoafetividades parecem constituir o tema central de discussão. Após o protagonista, chega a vez de Gabriel Fausztino compartilhar sua primeira lembrança erótica, ainda na infância, envolvendo o contato próximo com outro garoto. Este “espaço seguro” para relatos LGBTQIA+ se torna um momento acolhedor, posto que conversam enquanto estão sentados no sofá de casa, em total intimidade com a câmera e o resto da equipe. A obra assume um caráter analítico, espécie de terapia em grupo, onde se permite escutar e se identificar com diferentes histórias, que talvez estabeleçam alguma conexão com nossas vivências pessoais.

Em contrapartida, as histórias seguintes se tornam mais variadas, sem um recorte temático específico. As mulheres passam a dominar a poltrona-divã, contando seus sonhos, devaneios, traumas e receios. O filme abandona o foco erótico, permitindo, por exemplo, relatos de um pesadelo envolvendo uma cachoeira. A figura de Caetano Gotardo costura estas falas, retornando com frequência e relembrando os amores e namoros. No entanto, conforme avança, o projeto se torna mais amplo, e também mais vago em sua ambição temática. Os personagens parecem cada vez mais livres para discorrerem a respeito de tudo e qualquer coisa, e a câmera demonstra a disposição em escutá-los na história de sua preferência.

Por este aspecto, Uma Montanha em Movimento se aproxima do cinema documentário tradicional, embora os segmentos envolvendo o cineasta flertem com a linguagem experimental. Ele também pode ser pensado enquanto cinema caseiro (no sentido estrito da filmagem íntima, dentro de casa), cinema “amador” (sem qualquer aspecto pejorativo na estrutura do faça-você-mesmo) e na aparência de um “filme de pandemia”, muito adequado à maneira como pensávamos a clausura e a imagem e nossos corpos três ou quatro anos atrás.

Rumo ao final, a narração de Gotardo revela algumas de suas referências intelectuais e imagéticas: Ernest Lubitsch, Humberto Mauro, Katsushika Hokusai. O primeiro teria sugerido que, para aprender como filmar os seres humanos, os cineastas precisariam primeiro compreender como filmar as montanhas. O segundo cunhou a famosa frase “cinema é cachoeira” (geralmente retirada de contexto em suas inúmeras citações). Já o terceiro foi conhecido pelas centenas de ilustrações do Monte Fuji, demonstrando a busca incessante por compreender seu objeto de estudo, com a certeza de que nunca iria esgotá-lo.

Este é o peso que representa o corpo para Caetano Gotardo, cineasta das mãos e pés, dos olhos que se encaixam em ombros, das lutas românticas entre amantes na cama, das performances alegres, tristes, catárticas. Ele expressa muito de sua visão de mundo através desta gestualidade frenética, abstrata, um tanto violenta consigo próprio (vide a primeira cena, incluindo os puxões agressivos na pele). A preocupação não se encontra nos belos enquadramentos, luzes e som cuidadosamente mixados — pelo contrário. Existe um valor na crueza, na espontaneidade e no caráter não-industrial do cinema que parece seduzir o autor. Assim, segue filmando seu próprio Monte Fuji, de novo e de novo, em busca de um esclarecimento utópico da subjetividade humana. 

Uma Montanha em Movimento (2025)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.