A Primavera (2025)

Trégua?

título original (ano)
A Primavera (2025)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
110 minutos
direção
Daniel Aragão, Sérgio Bivar
elenco
Luiz Aquino, Eduarda Rocha, Ghilherme Mileron, João Menezes, Ruibeni Sales, Marlon Silva, Aramis Trindade
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

A Primavera deseja ser um filme grandioso. “Filmado com lentes anamórficas soviéticas em CinemaScope”, gritam os letreiros de conclusão, em letras garrafais. Há dezenas de locações, além de incontáveis figurantes espalhados em jantares, festas em apartamentos de luxo, shows, restaurantes. A câmera se desloca pelo centro do Recife com lentes grande-angulares no intuito de ver tudo, abraçar o máximo de espaço possível. Os longos planos permitem aos personagens andarem, correrem pelas ruas, sem que o espectador perca um segundo sequer do deslocamento.

Além disso, os diretores Daniel Aragão e Sérgio Bivar efetuam uma obra relativamente longa (110 minutos), de ambição panorâmica, representando um mosaico da classe artística de baixa renda na região. Colam a câmera nos poetas, nos músicos, nas prostitutas, nos indivíduos em situação de rua. É claro que o poeta Jeová (Luiz de Aquino) e a prostituta Maria (Eduarda Rocha) representam muito mais do que a história particular de duas pessoas específicas. Eles são vistos como exemplos de um grupo socioeconômico mais amplo. Por isso, convém enxergar o drama enquanto posicionamento dos criadores em relação às classes populares.

Em paralelo ao escopo imponente, os criadores também buscam oferecer uma obra acessível. Na base, trata-se de um boy meets girl, um romance convencional. Os protagonistas literalmente trombam na rua, quando os poemas dele caem no chão e, juntos, precisam recolher o material. O amor nasce do mote preferido das comédias românticas norte-americanas. Seguem-se discussões sobre arte, idealismo, o preconceito contra a profissão da mulher, e a luta para o tímido artista vocalizar suas criações. Ciúmes, intrigas e suspenses (a identidade do comprador anônimo dos poemas) completam a receita.

A Primavera deseja ser ao mesmo tempo ultra construído e espontâneo, operístico e minimalista, realista e fabular. A conta não fecha.

No entanto, tamanha preocupação em ser (1.) admirado e (2.) compreendido esbarra em algumas ferramentas práticas. A primeira dela reside nos problemas de produção — em especial, as evidentes dificuldades de som. Diversos diálogos (todos?) foram dublados, caso em que a sincronia labial fica bastante prejudicada. Mesmo assim, o tratamento das falas a posteriori ainda soa estranho, como se os protagonistas estivessem ora fechados numa bolha hermética, ora gritando num megafone, em tons distorcidos. 

Curiosamente, é possível enxergar o fio da lapela na camisa aberta do ator, assim como a luz do aparelho piscando nas costas da atriz. O som direto teria sido inteiramente gravado e dispensado a seguir? A sombra do operador de câmera se faz presente sobre os corpos e espaços filmados (devido à insistência em trabalhar com longos planos-sequência, em câmera na mão), para um projeto que nunca discute o caráter metalinguístico, nem pretende causar um distanciamento via revelação do mecanismo cinematográfico. Pelo contrário, a imagem margeando os corpos e aproximando-se dos rostos sempre que possível privilegia a imersão e as sensações.

Restam outros cacoetes, dando a impressão de uma obra maneirista, com uma cópia finalizadas às pressas: problemas na legenda (alternando entre inglês e português no diálogo com o turista), o acréscimo do efeito de película riscada, o uso ora ostensivo de direção de arte (os figurinos do Blueseiro), ora carente de construção de objetos e cenário (a cena com o representante da direita, clamando por uma obra “heróica e patriótica”). A Primavera deseja ser ao mesmo tempo ultra construído e espontâneo, operístico e minimalista, realista e fabular. A conta não fecha.

Diversas cenas precisariam de contextualização, ou trabalho mais detalhado de roteiro, para preservarem o significado de perigosas ambiguidades morais. Este é o caso do poeta urinando no dinheiro do despacho; de sua conversão abrupta e inverossímil em um sujeito perigoso, com uma barra de metal nas mãos; do efeito visual para distorcer rostos rumo à conclusão; da crise novelesca do amante que joga garrafas no chão. Os personagens soam inconsistentes, conforme os cineastas atribuem ornamentos e adereços incompatíveis com as personalidades construídas até então. 

O resultado é menos detestável do que fraco, insistente demais em ser amado e aceito por sua magra benevolência social. Os poetas reais desta empreitada soam muito mais potentes do que o filme destinado a representá-los. Suas palavras se sobressaem à câmera giratória e ostensiva no bar, ou às distorções vaidosas da lente-anamórfica-soviética durante um confronto com a direita reacionária. Os problemas são anteriores, de ordem conceitual. Eles residem na própria crença de que estes artistas e representantes do povo necessitem de tantas plumas e paetês para se tornaram interessantes à imagem e ao som. Não aparentam bastar em suas vidas cotidianas, precisando de um romance idealizado, na primeira metade, e do fetiche trágico do mundo cão, na segunda metade.

Dentro da 28ª Mostra de Tiradentes, este projeto também gerava apreensão graças à presença do cineasta Daniel Aragão entre os escolhidos para a seleta Mostra Olhos Livres — principal seção competitiva, segundo o novo formato adotado pelos organizadores. Nos últimos anos, o artista se distanciou do grupo progressista de Pernambuco, aliando-se a Josias Teófilo e outros cineastas da direita. Aderiu ao pensamento conservador e participou do filme O Jardim das Aflições, uma homenagem ao autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Em seguida, rompeu com estes colaboradores em virtude de disputas na prestação de contas do documentário. 

Seu posicionamento político vacilante foi muito discutido pelos corredores do festival, conhecido pelo posicionamento assertivo em defesa de pessoas negras, mulheres, LGBTQIA+, indígenas, etc. — o oposto de tudo o que o olavismo e a direita “anti-identitária” sempre pregaram. Ora, para quem esperava encontrar em A Primavera um filme raivoso, bolsonarista — um grito em defesa do masculinismo e dos valores de tradição, família e propriedade —, a experiência possui um caráter menos fervoroso. A obra soa como um retorno pretensioso em termos imagéticos, porém modesto em sua visão de mundo. Um pedido de trégua, quem sabe.

Talvez o projeto resulte apenas triste — um drama que não sustenta nem suas grandes pretensões estéticas, nem o suposto humanismo que limita as mulheres a uma dezena de planos próximos de suas bundas. Trata-se de um filme sobre poetas que não aproveita a sua poesia, e que se aproxima de pessoas em situação de rua somente para mostrá-las morrendo em plano próximo, ou gritando feito loucas pelas ruas. Dificilmente agradaria à direita, ao passo que tampouco tem muito a oferecer à esquerda. Fica o questionamento, em meio a tantos filmes inscritos, quanto à decisão da curadoria de incluí-lo em tão nobre posição. 

A Primavera (2025)
4
Nota 4/10

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