Eis um subgênero que talvez o cinema brasileiro nem suspeitava que precisasse tanto: a biografia experimental. As dezenas de documentários biográficos que chegam às salas nacionais a cada ano (além de algumas ficções) se sentem na obrigação de honrar uma pessoa querida, de estar à altura dela. Querem deixar clara a sua paixão, destacando os feitos do personagem para justificar, assim, a própria empreitada cinematográfica — já que poucos filmes são dedicados a pessoas detestadas por seus autores.
Por isso, o formato tão prolífico quanto desgastado costuma repetir as iniciativas elogiosas, mesmo hagiográficas, de pouquíssima nuance ou questionamento acerca das complexidades do indivíduo. Privilegia-se a estrutura dos talking heads, ou seja, as cabeças falantes entrecortadas por trechos de material de arquivo (sobretudo nos palcos, posto que os ícones musicais predominam). Familiares, parceiros próximos e especialistas na área abordada surgem em tela para comprovar que o eleito era, sim, genial, diferente dos demais, e digno de tantas honrarias.
Ora, alguns elementos incomodam nesta padronização do filme-elogio: em primeiro lugar, a submissão do cinema ao objeto de estudo, como se a linguagem cinematográfica precisasse de diminuir, tornando-se discreta e invisível, para não roubar o holofote da pessoa amada. Em segundo lugar, a incapacidade de dialogar em termos estéticos, incorporando na linguagem audiovisual o estilo da figura retratada — um filme radical para uma pessoa radical, por exemplo, ou um projeto fragmentado e frenético para alguém disperso e frenético.
As Muitas Mortes de Antônio Parreiras compreende que nenhuma pessoa pode ser resumida ou esclarecida, e que as melhores biografias são aquelas destinadas a desconstruir seus objetos de estudo.
Em terceiro lugar, é exasperante a crença de que certos artistas e celebridades “merecem um filme”, como se a obra audiovisual constituísse questão de meritocracia, ou uma consequência inevitável de suas qualidades. O cinema, neste caso, se torna menos um gesto de criação do que um luxuoso presente. Em quarto lugar, a vocação explicativa e reveladora, por se estimar a necessidade de contar o biografado, resumindo-o ao espectador. Parte-se do pressuposto que o interlocutor desconhece todas as informações. Portanto, é preciso pegar generosamente em suas mãos, tal qual uma criança, e começar do princípio, de preferência, do nascimento ao túmulo. “Ele nasceu no dia…”.
A lista poderia continuar. As Muitas Mortes de Antônio Parreiras supera todos estes problemas graves, além de mais alguns. Constitui uma obra iconoclasta, arriscada, sem a mínima pretensão de explanar ou sintetizar a vida e obra do pintor niteroiense. Quem desejar conhecer com exatidão seus primeiros quadros, como aprendeu a pintar, a conquista do sucesso e afins, terá que procurar no Google, Wikipédia e similares — esta não é a função do cinema, segundo o diretor Lucas Parente. Ele parte do pressuposto que o cinema serviria a dialogar com o protagonista, ao invés de compreendê-lo. Em consequência, diferencia-se radicalmente do formato da reportagem jornalística.
Esteticamente, o cineasta adota uma janela inicial mais estreita, semelhante tanto aos retratos fotográficos em still quanto a diversas pinturas de Parreiras. Combina os trabalhos produzidos pelo protagonista com outros, da mesma época, além de segmentos visuais que o ajudem a contextualizar a época (filmagens de Humberto Mauro e Silvino Santos, por exemplo). Evita a narração didática em off, os letreiros e similares, preferindo distorções óticas e sonoras — estas últimas, com o som dublado sobre as falas de Pepe Bertarelli e Leo Pyrata. Desta maneira, sublinha a opção pelo artifício e pelo distanciamento, em detrimento do realismo e da imersão.
Parente obtém um efeito hipnótico, espécie de transe dos sentidos. Quem for à sessão para esclarecer dúvidas, sairá com ainda mais perguntas — um mérito considerável desta obra, convenhamos. Isso porque a imagem do Museu Antônio Parreiras se comunica com aquela do Museu Nacional em chamas, conectando passado e presente. O ato de pintar se recria à nossa frente, conforme o personagem fictício reproduz as cores e opções estéticas do original. Ao mesmo tempo, salta-se dos rabiscos iniciais a uma versão intermediária do quadro, e então, à pintura finalizada; enquanto se compara a paisagem real com a representação pictórica do artista, que bradava: “Poucos homens haverá neste mundo mais realistas do que eu”.
O projeto vai além ao introduzir elementos fabulares, a exemplo das aves empalhadas, além da associação entre personagens indígenas girando, juntos a uma pedra girando. As mortes do título se concretizam de maneira espetacular: Parreiras morrerá na natureza que ama; vítima da flecha de um indígena; ou de desgosto após reações negativas ao seu trabalho. Por parte da crítica, há de se admirar quando um cineasta compreende seu biografado enquanto ponto de partida, não um ponto de chegada. O pintor se torna um princípio, uma evocação ampla, livremente inspirada no real. A realidade nunca prende o filme, tal qual uma âncora no barco cinematográfico. Serve de mero incentivo, do qual se distanciar assim que possível.
Em nenhum momento As Muitas Mortes de Antônio Parreiras sugere que o homem constituía o melhor pintor de sua época, um pioneiro, de caráter ilibado, bom pai, bom marido, etc. Nunca presta homenagem ao homem retratado, tampouco o ataca. Pelo contrário, privilegia as ambiguidades no percurso, “pois a corrupção tem seus encantos”, segundo um diálogo. Sugere, igualmente, que a representação de mais de cem anos atrás dificilmente se sustentaria no que diz respeito ao olhar para a alteridade esperado das representações sociais no século XXI.
Em especial, compreende que nenhuma pessoa pode ser resumida ou esclarecida, e que as melhores biografias são aquelas destinadas a desconstruir seus objetos de estudo. Em oposição a montar um quebra-cabeça, embaralhar novamente as peças. Deixemos às escolas e demais instituições de ensino que esmiúcem as compreensões: o cinema precisa elaborar algo novo a partir da vida de Parreiras, não para Parreiras, muito mesmo se expressando em nome dele.
Parente envereda por uma evocação fértil da vida deste homem, dialogando a partir do pintor, para além do homem em tela. Nem o cinema, nem as artes plásticas se esgotam neste gesto. Ele percebe, por fim, que a melhor abordagem num encontro entre distintas linguagens artísticas seria de ordem dialética. Neste caso, o cinema do autor experimental se encontra com a pintura do artista realista para produzir uma terceira forma, incompatível com as anteriores, e decorrente desta fricção improvável. O cinema serve, portanto, a atritar formas e sentidos, ao invés de amansá-los.