Bruscky, um Autorretrato (2025)

O artista em construção

título original (ano)
Bruscky, um Autorretrato (2025)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
94 minutos
direção
Eryk Rocha
com
Paulo Bruscky
visto em
30º Festival É Tudo Verdade (2025)

Dizem que os cineastas se dividem entre aqueles que desejam moldar o mundo às necessidades da câmera (criando cenários, controlando personagens e interações) e aqueles que preferem adequar a câmera às necessidades do mundo (filmando da maneira como os fatos e acontecimento se apresentam). São os intervencionistas contra os acolhedores; os amantes do controle contra os apaixonados pelo acaso. 

Eryk Rocha claramente se encontra no segundo lado do espectro: procura uma estética que se adeque aos povos indígenas quando os representa (em A Queda do Céu), e encontra uma linguagem apropriada para valorizar o futebol de várzea na hora de posicionar a câmera junto à terra batida (em Campo de Jogo). Agora, para filmar Paulo Bruscky, decide ir em direção ao artista pernambucano, encontrando uma estética capaz de estabelecer diálogo. Nada de trazer o homem a um estúdio preparado, nem converter textos escritos numa narração explicativa em off

Em Bruscky, um Autorretrato, o dispositivo está disposto a filmar seu personagem durante o tempo que for necessário, esperando que o encanto se produza à sua frente. Passa horas diante do personagem num bar, enquanto ele conversa com amigos. A luz cai, as cervejas se multiplicam, e a câmera segue filmando. Registra longos segundos de Paulo encarando a câmera. Observa-o se banhar na praia, entrando e saindo da água. Acompanha-o na caminhada pela cidade entre calçadas, sebos e ruas. A imagem vai até ele, e deixa que, de certa maneira, o homem dite os rumos do projeto.

Eryk Rocha propõe uma obra caótica, a exemplo de Paulo Bruscky. O documentário se converte num retrato em andamento, um filme cujo processo constitui a própria finalidade.

O protagonista chega inclusive a dar o corte em uma das cenas, fazendo o movimento característico com as mãos. Seria possível falar em uma obra realizada com Bruscky, ao invés de sobre Bruscky — um encontro entre dois artistas e sensibilidades, numa horizontalidade bastante saudável de pontos de vista. Por isso, é fundamental que o cinema se assuma como tal. “E essa filmagem aí?”, pergunta uma amiga comerciante ao se deparar com a câmera. Adiante, o homem menciona mais algumas vezes o projeto a seu respeito. O cinema jamais se esconde atrás de seu objeto de observação.

Neste sentido, o cineasta propõe uma obra caótica, um work in progress, a exemplo de Paulo. O boom entra diversas vezes no enquadramento, os cortes se fazem visíveis e ruidosos, a câmera ajusta seu enquadramento durante o plano. O próprio Eryk Rocha adentra o quadro para pegar uma cerveja sobre a mesa. A produtora Margarida Serrano também aparece na imagem, arrepende-se, recua alguns passos. Depois, conversa com o artista a respeito do amor, enquanto ambos escutam um samba. O documentário se converte num retrato em andamento, um filme cujo processo constitui a própria finalidade. O artista é a obra de arte.

Logo, nenhuma criação de Bruscky se torna mais importante do que o autor das peças. O enquadramento se fecha no rosto dele, nas encaradas, nas frases provocadoras — e muito cientes disso — quando ele se pronuncia a respeito da ditadura militar, e revela o desejo de ser “uma fogueira acesa”. “Censura ou autocensura não faz parte do repertório da minha vida, da minha consciência”, decreta. As instalações e obras surgem como fragmentos picotados, colados de maneira voluntariamente áspera e conflituosa com a imagem do artista no tempo presente. 

Rocha entende que, mais do que elencar os principais trabalhos de modo a converter o documentário num currículo audiovisual de Paulo Bruscky, ele pode enxergá-lo enquanto pensador da arte e do mundo. O diretor compreende que o protagonista possui uma maneira singular de interpretar os homens e a natureza. Portanto, dispõe-se a escutá-lo discorrer a respeito de qualquer tema, seja a beleza das árvores ou a importância do amor no processo de criação. O protagonista compra dicionários cujas páginas talvez estejam faltando, e recusa-se a abrir o livro para verificar. Sua mente funciona segundo critérios particulares, dos quais o filme procura se aproximar.

Assim, este Autorretrato em terceira pessoa investiga, com tanto interesse quanto distanciamento, os mistérios do processo de criação. Por que o sujeito estaria disposto a deixar suas obras quebrarem, empolgado com a perspectiva de recriá-las? O que fazer com tantas ideias registradas aleatoriamente em papéis, empilhadas numa gaveta? De onde vem a ideia, a inspiração, os critérios para a elaboração de artes conceituais? O documentário não fornece respostas, é claro, porém refina e dilapida as suas perguntas. Aproxima-se do homem sem a intenção de desvendá-lo, nem explicá-lo.

Paralelamente, a montagem aposta em fragmentos; em flashes de obras junto a captações contemporâneas. Cola cacos e cacarecos ao rosto e corpo de Paulo. A ida à praia torna-se textura de imagem, devido à intensa granulação, até a filmagem através da manga da camiseta converter o simples passeio numa forma distinta de observar a praia. Pequenas metáforas como estas representam Bruscky muito melhor do que qualquer letreiro com datas e fatos o faria. A camiseta se faz telescópio, binóculo, matéria de arte. Entre cervejas e passeios, entre compras e conversas, o artista elabora obras conforme elabora a si próprio.

Bruscky, um Autorretrato (2025)
8
Nota 8/10

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