Como filmar a rebeldia? Esta parece ser a questão que atravessa toda a filmografia de Kiril Serebrennikov. Ele já retratou alunos que se opõem ao sistema de ensino (O Estudante, 2016), roqueiros apaixonados que não tomavam álcool nem usavam drogas (Verão, 2018), um artista contra a hipocrisia da sociedade russa (A Febre de Petrov, 2021) e a esposa de um compositor que claramente se casou com ela para manter as aparências (A Esposa de Tchaikovsky, 2022). Agora, atinge o ápice da busca pela desobediência com a jornada de Eduard Limonov, poeta, ativista e figura provocadora da União Soviética, França e Estados Unidos entre os anos 1970 e 2000.
O cineasta gosta de tratar suas histórias como colchas de retalhos. Permite a mistura de drama, comédia, ação, suspense, musical, animação, material de arquivo. Introduz cenas absurdas (a morte imaginária de Limonov, no meio da trama), junto a outras, claramente sonhadas. Combina, portanto, devaneios e fatos, persuadido que uma personalidade controversa pode ser unicamente retratada através de um olhar veloz, caleidoscópico e propenso às metamorfoses. Em cerca de 140 minutos, existem incontáveis cenas, personagens, cenários, ações e conflitos em Limonov: O Camaleão Russo. O excesso se torna meio e finalidade.
Assim, ao invés de explicar o homem, Serebrennikov o evoca de maneira livre, enquanto caldeirão de contradições. No filme, o (anti-)herói (interpretado por Ben Whishaw) defende a revolução armada, embora nunca participe de qualquer coletivo revolucionário. Ele afirma defender gays, mulheres, imigrantes e demais “sofredores”, apesar de nunca compartilhar de suas dores, nem conviver com tais pessoas. Declara detestar o capitalismo norte-americano, embora usufrua das conveniências do país, e manifesta saudades pela União Soviética que ele, no fundo, despreza. Podemos listar pessoas e causas às quais o jovem se opõe. Muito mais difícil é saber o que, exatamente, ele apoia.
Em cerca de 140 minutos, existem incontáveis cenas, personagens, cenários, ações e conflitos em Limonov: O Camaleão Russo. O excesso se torna meio e finalidade.
O filme poderia enxergá-lo enquanto grande artista, ou exímio estrategista político. Ora, nenhuma das duas vertentes interessa ao diretor. Seus poemas são declamados pouquíssimas vezes na narrativa, e jamais presenciamos a composição destas obras. Já o percurso político chega aos sobressaltos: de repente, Limonov precisa se exilar devido a uma perseguição que nunca havíamos visto até então. Num salto temporal, percebemos que ele reuniu inúmeros jovens fascistas para lutarem em seu nome. De onde veio este ímpeto, este senso de liderança? O homem que nunca havia cuidado de uma casa ou cozinha converte-se, num corte da montagem, num mordomo e cozinheiro profissional.
Como se percebe, este é um filme confuso — e ciente de sê-lo, além de orgulhoso de tudo o que embute num único percurso. “Sei que sou um homem ruim, e tenho orgulho disso”, exclama o protagonista, antes de afirmar: “Eu amo a loucura. Tudo é loucura!”. Por loucura, entenda um inesperado número musical, um percurso em plano-sequência por um cenário pós-guerra, uma sucessão frenética de acontecimentos dos anos 1980 e 1990 (queda do muro de Berlim, governo Thatcher, surgimento da AIDS), rupturas e retornos inesperados com a namorada Elena (Viktoria Miroshnichenko). Já mencionamos que o rapaz possui fetiche por simulação de estupro?
O cineasta adora ressaltar o quanto Limonov era, na verdade, um provocador, um motor de tumulto. Isso significa, aos seus olhos, a possibilidade de criar cenas de gritos, de copos d’água jogados na cara de jornalistas, de namoradas gritando e indo embora, de chefes mandando-o embora. O roteiro se torna uma sucessão quase ininterrupta de catarses. Ao invés de tomar uma posição quanto ao seu personagem (apoiando-o, criticando-o), Serebrennikov apenas se contenta em apreciar o volume de dilemas que ele pode gerar. Trocando em miúdos bem contemporâneos, o diretor torce pela treta. Incomodando alguém, seja à direita ou à esquerda, seja entre comunistas ou capitalistas, está de bom tamanho. Estivesse vivo em 2025, Limonov certamente seria um influencer de sucesso.
Nesta busca retórica pelo espetáculo da polêmica, o filme se refugia em cenas bastante questionáveis. Para além do já citado estupro, uma sequência envolvendo sexo gay pode facilmente ser taxada de homofóbica e odiosa. Quando se encontra no fundo do poço, sem dinheiro nem perspectivas, Limonov “aceita” ser sodomizado por um homem negro em situação de rua. No dia seguinte, veste-se em trajes femininos, e grita a quem quiser ouvi-lo as delícias de experimentar um homem negro. A cena é grotesca, beirando a animalização do homem miserável e a evidente fetichização do corpo negro — sugerindo que alguém precisaria estar em estado de total desumanização para se “sujeitar” ao contato íntimo com um indivíduo do mesmo sexo.
Ao final, nota-se evidente empenho do ator, dos produtores e de toda a equipe em definir este homem por seus enfrentamentos. Ele parece importar unicamente a partir do momento em que alguém o desafia. De certo modo, ele precisa ser odiado para existir — caso em que todos estes protagonistas indesejáveis da filmografia do autor russo refletem sua própria rebeldia egocêntrica e juvenil, na condição de alter-egos. Os acontecimentos se atropelam de tal modo que se torna difícil apontar minúcias na construção, como o fato de filho e pai russos conversarem em inglês, ou a maquiagem atroz que serve para envelhecê-lo, porém, desaparece quando o homem se torna ainda mais idoso.
Limonov: O Camaleão Russo desperta a sensação de um filme que soterra seu espectador de estímulos, cenas e acontecimentos quase incompatíveis entre si. Esteticamente, sonha em ser tão ofensivo e agressivo quanto seu protagonista, embora possa ser repreendido por tentar demais — existe uma artificialidade evidente na tentativa de incomodar imagem após imagem, durante mais de duas horas de duração. Serebrennikov segue tentando impressionar pelo estilo do descomedimento, do supérfluo, como se o fato de fazer tudo o que quiser equivalesse a uma liberdade infinita. Pelo contrário, o cinema é feito de escolhas (o princípio do próprio enquadramento). Cineastas que buscam embutir tudo num único filme somente revelam sua incapacidade de selecionar um ponto de vista. É muito mais difícil ser preciso do que hiperbólico.