Uma Família Normal (2023)

A má consciência

título original (ano)
Bo-tong-ui ga-jog (2023)
país
Coreia do Sul
gênero
Suspense, Drama
duração
116 minutos
direção
Hur Jin-ho
elenco
Sul Kyung-gu, Jang Dong-gun, Kim Hee-ae, Claudia Kim
visto em
Cinemas

Existe um subgênero muito particular dentre os dramas sociais que consiste em representar, através de um único grupo familiar, todos os problemas percebidos na contemporaneidade. Pense em Beleza Americana, no caso do cinema hollywoodiano, ou Meu Casulo de Drywall para o cinema brasileiro recente. Os autores desenvolvem, neste caso, um panorama nada animador do atual estado das coisas. Constatam que nos tornamos individualistas, egoístas, insensíveis, preocupados com o lucro, o prazer, a nossa própria aparência. Altruísmo é um conceito do passado.

O sul-coreano Uma Família Normal adere ao princípio de alerta de caos. Reúne as famílias de dois irmãos — um rico, e o outro, riquíssimo — para atestar nossa profunda hipocrisia em regime capitalista. No centro da trama estão Jae-gyu (Jang Dong-gun), um médico respeitado, e Jea-wan (Sul Kyung-gu), um dos maiores advogados criminalistas do país. Quando um acidente de trânsito deixa um morto e uma criança ferida, ambos são convocados a se posicionarem — o médico, na condição de especialista na saúde da vítima, e o advogado, enquanto profissional contratado para defender o motorista assassino.

Mas as tragédias não param por aí. A partir do atropelamento inicial, filmado de maneira crua e explícita, o roteiro inclui outros momentos de choque. O diretor Hur Jin-ho oferece um segundo atropelamento de indivíduos na rua, o espancamento de um homem em situação de rua até a morte, um terceiro atropelamento (de animal, desta vez), e uma caça ao javali, terminando de maneira estrondosa. Cada um destes instantes é orquestrado de maneira acelerada, abrupta, com efeitos sonoros grandiosos e captação em diversos ângulos. 

Uma montanha-russa com incontáveis reviravoltas e transformações internas de cada personagem. Para o diretor, mais vale o impacto do que a plausibilidade. 

É evidente a importância para os criadores em garantir o impacto destas cenas, que dominam a narrativa — todas as sequências giram em torno dos sucessivos acidentes. Tamanha carga emocional e sobreposição de catarses faz com que o longa-metragem se aproxime muito do folhetim — ou da telenovela, traduzindo em bom português. A narrativa chega a ter, ao mesmo tempo, uma criancinha inocente à beira da morte, um homem em situação de rua na UTI, um adolescente irresponsável pedindo para subornar a parte adversa e dois jovens comemorando seu assassinato. 

Em outras palavras, discute-se a virtude perdida destas pessoas, em diálogo aberto com os conceitos de bem e de mal. O autor demonstra forte descrença nas gerações atuais, estimando que os filhos tendem a ser ainda mais desumanos do que seus próprios pais. Uma Família Normal é regido por um fatalismo crônico, tanto nos acontecimentos (o acúmulo de mortes) quanto na impossível perspectiva de melhoria social. Segundo o suspense coreano, estamos no fundo do poço, e continuamos cavando. Mesmo os personagens apresentados inicialmente como gentis e honestos renunciam a suas qualidades até o fim do percurso — a desumanização, neste caso, ocorre por contágio.

Isso não significa que os acontecimentos, diálogos e personagens sejam mal construídos, muito pelo contrário. Os criadores apresentam um projeto polido, elegante, com orçamento visivelmente confortável para recriar uma vida de luxo e ostentação — sobretudo no restaurante privativo onde ocorrem os embates centrais. Quatro almoços ou jantares se tornam os ápices dos embates familiares, quando os dois irmãos e suas respectivas esposas brigam a respeito do melhor caminho a tomar. Quando nossos filhos agridem uma pessoa até a morte, devemos defendê-los (por serem nossas crias) ou entregá-los à polícia (para aprenderem a lição?). Ajudamo-nos de maneira eficaz pela condescendência ou punição exemplar?

O aspecto ético e moral possui forte interesse, ainda que exagerado à enésima potência, e bastante didático em sua abordagem. É conveniente demais que o médico cuide precisamente da garotinha vitimada no acidente de carro, cuja sobrevida favorece o trabalho do irmão advogado. Ainda mais acessório será o testemunho de um vídeo final, quando a perversidade dos primos será confirmada com um nível de vilania próximo dos personagens malvados dos desenhos infantis. Logicamente, enquanto Jae-wan lida com um importante caso de atropelamento no escritório, precisa gerenciar o espancamento provocado pela própria filha, transformada num poço de insolência: “Isso é um crime, ou dá pra fazer desaparecer?”

Como se pode notar, o cineasta evita qualquer sutileza na descrição de personalidades. Mesmo assim, pensando estritamente na relação emocional com o espectador (medo, surpresa, ojeriza, indignação), a proposta surte o efeito desejado. Hur Jin-ho sabe trabalhar ambientações, e consegue articular de maneira eficaz um sem-número de tramas e dilemas paralelos (o que ainda inclui a possível internação da mãe idosa, a disputa entre a mulher mais velha e a nova esposa, o bullying sofrido pelo garoto na escola, e o sofrimento da mãe da garotinha internada). Em menos de duas horas, o roteiro comprime uma quantidade de conflitos superior a muitas séries de televisão.

O resultado se mostra positivo enquanto exercício de linguagem cinematográfica visando a manipulação dos sentidos do espectador. Em se tratando de um filme de sensações, o projeto orquestra uma verdadeira montanha-russa com incontáveis reviravoltas e transformações internas de cada personagem. Verossímeis ou não, as guinadas se sobrepõem ao realismo, até se tornarem exemplares — para o diretor, mais vale o impacto do que a plausibilidade. 

Por fim, ele aparenta ter pouco a dizer a respeito da crise de valores da sociedade contemporânea, que lhe proporciona cenas tão empolgantes de atropelamentos e brigas. Hur Jin-ho se delicia, de maneira condescendente, com a crise que supostamente denuncia. É possível que o cinismo dos personagens se estenda, em certa medida, ao discurso do filme na totalidade. No entanto, assim como seus jovens irresponsáveis, o longa-metragem possui plena consciência de sua possível perversidade, e o aborda sem comedimento. Essa violenta franqueza será percebida como traço de honestidade ou de falta de empatia, dependendo do ponto de vista do espectador.

PS: Uma Família Normal é bastante prejudicado pelas legendas em português. Percebe-se de imediato que a versão brasileira foi elaborada a partir de legendas em inglês, e que muitas frases são traduzidas literalmente, soando estranhíssimas ao nosso registro oral. Os personagens conversam em termos que nenhum brasileiro empregaria, razão pela qual as interações soam ainda mais artificiais. Expressões como “pequeno bastardo” consistem certamente na tradução pouco cuidadosa de “little bastard”; “Apenas dê o dinheiro para ele de uma vez” possivelmente traduz, de maneira desengonçada, o termo “at once”. Quando a jovem mulher pergunta à cunhada se elas “podem ser amigas”, trata-se provavelmente de uma solicitação para utilizarem pronomes de tratamento menos formais. Pior ainda é ver o “just because”, que deveria se tornar “porque sim”, traduzido como “apenas porque”. A legenda parece ter sido feita às pressas, desconsiderando o contexto e a plausibilidade das falas. Em se tratando de um suspense comandado por afrontas verbais, o teor dos diálogos era importantíssimo. Espera-se que os distribuidores se atentem mais a estes fatores numa próxima vez.

Uma Família Normal (2023)
6
Nota 6/10

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