Os personagens deste filme estão em perpétuo movimento. Correm ao ponto de ônibus, sobem ruas e vielas, atravessam avenidas vazias durante a madrugada — a narrativa inteira se desenvolve à noite. Nunca sabemos ao certo para onde vão, e eles tampouco parecem ter um destino preciso. Conversam ao longo do deslocamento ou, ocasionalmente, sentados à beira da rua e em alguma praça de Belo Horizonte. As figuras saem do nada e chegam a lugar nenhum. Transitam pelo centro e pela periferia, porém jamais finalizam seus dias em casa, nem cumprem obrigações pessoais e profissionais. Movem-se pelo princípio do prazer.
Em paralelo eles contam, uns aos outros, histórias de mobilidade. Uma jovem descreve o conflito do qual saiu “sangrando, andando a esmo. Mas eu não queria voltar. Não voltei”. Outro homem, caído num pântano, “saiu andando. Fugiu. Tá fugindo até hoje”. Um terceiro passa o “dia inteiro andando de buraco em buraco”. Até as figuras meramente evocadas se definem pela tendência a continuar em perpétua atividade. Elas nunca possuem objetivo preciso em suas andanças e fugas. Colocam-se em marcha porque, ao que tudo indica, nada mais teriam a fazer.
Baixo Centro se articula entre a melancolia de uma rotina imutável e o medo de um perigo invisível. Os personagens cabisbaixos declamam poemas a si próprios, murmuram pequenas histórias e travam minúsculos encontros amorosos, de caráter efêmero. Pertencem às classes populares, entretanto, os laços sociais (profissão, filiação a grupos e instituições) são retirados de perspectiva. Deixam a impressão de traçarem percursos semelhantes todos os dias, conhecendo exatamente seu terreno — razão pela qual podem apontar a um desconhecido o único trecho suficientemente iluminado de uma viela, onde podem se sentar antes da parte escura demais.
Um cinema urbano que dispensa tanto os determinismos típicos do drama social quanto a tentação de construir uma periferia estetizada.
Em contrapartida, algo aponta a possíveis conflitos, de origem inexplicada. Os protagonistas citam, por alto, a “guerra” nos bairros e o medo da polícia. No entanto, tais embates não se concretizam nas festas e ruas. Robert (Alexandre de Sena) menciona a existência de uma dívida que o persegue. O fotógrafo Djamba (Marcelo Souza e Silva) anda ao som de uma trilha de sonora tão potente e perturbadora que o sujeito parece se encaminhar às últimas horas de sua vida. Algo sinistro se desenha na trajetória destas figuras — acontecimento este que será concretizado unicamente na cena final.
Antes disso, mal enxergamos rostos, ou qualquer conflito propriamente dito (no sentido clássico do termo). O primeiro close-up, digno deste nome, surge após vinte minutos de narrativa. Antes disso, os diretores Ewerton Belico e Samuel Marotta preferem mergulhar os personagens na noite, em planos abertos que favorecem a arquitetura dos becos e ruas, com precioso cuidado de composição. Cada via que atravessam é acompanhada de um movimento de câmera meticuloso, na velocidade e sentido dos passos, e nada mais do que isso. A geografia se torna um personagem tão construído quanto os jovens que a ocupam.
Talvez o elemento mais chamativo deste longa-metragem, para o bem e para o mal, constitua o trabalho sonoro. Os criadores optam por um som “sujo”, no qual se percebe fortemente os barulhos das conversas e do espaço urbano. Isso favorece a impressão de naturalismo, em oposição a tantos projetos clássico-narrativos, para os quais a clareza das falas vem em primeiro lugar. Já a trilha sonora se impõe em volume altíssimo, com tamanha potência que insiste em chamar atenção para si mesma. A aparente languidez da história se contrasta com as intervenções violentas de músicas e ruídos locais.
Ora, os diálogos são fortemente prejudicados pelas demais pistas sonoras. Muitas falas se tornam incompreensíveis, soterradas pela algazarra de algum bar, ou pela música acrescentada em pós-produção. O começo da conversa entre Teresa (Cris Moreira) e Luisa (Bárbara Colen), assim como a maioria das reflexões de Djamba, se perdem por completo. É difícil determinar em que medida correspondem a escolhas deliberadas dos autores (preferindo uma ruminação interiorizada, retórica, que esvaziaria o significado das palavras), ou então de deficiências na captação de som direto e na mixagem. O problema também pode residir na cópia disponibilizada à imprensa. De qualquer maneira, assim como os personagens vão, sem sabermos para onde, eles também falam (em muito momentos) sem compreendermos o que dizem.
Baixo Centro sustenta uma aparência de liberdade e despojamento, como se não fosse obrigado a transmitir mensagens, objetivos precisos, relações de causa e consequência, conflitos ou linearidade (no sentido de cronologia). As cenas poderiam ser dispostas em ordem distinta, sem real prejuízo ao resultado. Costuram-se pela unidade do cenário e do período noturno, enquanto as divagações carregam caráter universal e atemporal: “Não havia nada no começo, eu acho”, cogita Luisa. Ela abraça um rapaz encontrado por acaso (Renan Rovida), porém, os corpos logo se separam. Robert e Teresa iniciam um contato misto entre sexo, brincadeira e briga. Também se afastam. Nada perdura nesta leve crônica das impermanências — analisar as cenas em termos de amores, amizades e traumas seria um exagero de interpretação.
No final, os cineastas oferecem uma obra tão leve quanto coesa. Embora o final aponte a uma leitura possivelmente trágica, o evento restará fora das imagens, sugerido pelo som estrondoso. Belico e Marotta abraçam uma forma de cinema urbano que dispensa tanto os psicologismos e determinismos típicos do drama social (tal personagem sofre porque vem de família pobre, porque é explorado no trabalho, etc.) quanto a tentação de construir uma periferia estetizada, hermética, enquanto exemplo simbólico de um discurso maior. Os personagens nunca são instrumentalizados para a defesa de uma pauta específica — eles representam tão somente a si próprios. Corpo e cidade.
Pode-se falar em personagens-fantasmas, marginais desconectados do centro. São amantes que não amam e amigos que pouco conversam, gerando primeiros encontros que não resultam em segundas oportunidades. Terminam seus percursos como começaram. Ironicamente, um único personagem terá concluído seu caminho, no sentido de chegar a algum lugar — e logo ali, no conflito clássico que encerra a narrativa, a maioria dos dramas tradicionais começaria a sua história. Baixo Centro prefere existir para além da construção clássico-narrativa, apartado de um cinema de explicações, reivindicações e grandes causas. Em oposição aos filmes-de-tema (sobre o racismo, sobre a miséria, sobre a luta de classes), este talvez seja um filme em oposição a certa tendência do cinema brasileiro atual.