Do Sul, A Vingança tem vendido, enquanto principal trunfo de marketing, o fato de ser supostamente o primeiro filme realizado inteiramente no Mato Grosso do Sul. Embora inúmeros veículos tenham copiado a informação dos releases, cabe uma investigação minuciosa — afinal, os diversos títulos sul-mato-grossenses apresentados no festival Bonito Cine Sur não entrariam nesta conta?
De qualquer modo, pioneiro ou não, trata-se de um raro projeto realizado no Estado, tendo como foco a fronteira com o Paraguai e a Bolívia. Como de costume em ficções fronteiriças, a região é apresentada enquanto antro de políticos corruptos, assassinos de aluguel, traficantes e outros sujeitos perigosíssimos. A localidade vale, aos olhos da direção, pelo potencial de conflitos e sangue capazes de materializar em imagens — nos moldes do que o cinema norte-americano faz com o México, por exemplo.
O protagonista é um escritor, Lauriano (Felipe Lourenço), acostumado a produzir livros a respeito de crimes reais brasileiros. Porém, enquanto o true crime mais popular se volta aos episódios de assassinatos, o herói prefere retratar tramas de traficantes e milicianos. Desenvolveu, portanto, o costume de se encontrar com eles, entrevistando os sujeitos mais perigosos do país para produzir obras com grande apelo de vendas. Ele será nosso guia e observador ao longo da narrativa. A priori, o rapaz não efetua nenhuma ação propriamente dita, no sentido de provocar os conflitos. Ele tampouco escreve.
Mesmo na cartilha antiquada do cinema brucutu, Do Sul, a Vingança apresenta inúmeros problemas, seja em decorrência do baixo orçamento, seja pelas escolhas estéticas e narrativas.
Mesmo assim, marca reuniões com chefões do crime e delegadas corruptas, todos muito dispostos a confessar para ele a extensão de seus planos, mencionando desafetos e revelando planos escusos. Mas por que Lauriano insiste nestes encontros perigosos? Mais tarde, uma cena sugere a fascinação pelo poder, que soa incompatível com o rapaz eloquente, tímido e protocolar. É muito difícil acreditar que ele tenha, de fato, grande experiência nos confrontos com bandidos, em virtude da postura ingênua quando é retrucado. “O que é isso? Você me drogou? Por quê?”.
De qualquer modo, este jovem parte pelas estradas brasileiras à procura de um tal Jacaré (Espedito Di Montebranco), por sugestão do político Victor Bautista (Leandro Faria), em prisão domiciliar. Segue-se uma trama rocambolesca envolvendo uma dezena de personagens que buscam se trapacear, chantagear, até trocarem de lado ou fingirem se posicionar contra aliados de fato. Um youtuber histriônico, um indígena guaicuru e mais alguns capangas compõem a ciranda, que ainda inclui dançarinas sensuais com uma arma na mão.
A coerência e a verossimilhança não aparentam constituir o foco do cineasta Fábio Flecha, para quem se torna mais importante certa aparência de suspense, uma atmosfera de malvados perseguindo malvados, perversos trapaceando perversos. Quanto mais rápidas forem as guinadas e reviravoltas, menos tempo o espectador terá para perceber que, no fundo, poucas ações possuem qualquer sentido real (ou causa, consequência, contextualização, enfim).
A evidente apreciação pelo cinema de ação norte-americano se traduz numa coletânea de referências — ou clichês, como preferirem — do imaginário do gênero. Logo, opta-se por flashbacks em preto e branco, embora as poças e gotas de sangue preservem a cor vermelha, em recurso análogo aos filtros das redes sociais. Os personagens empunham suas armas diretamente a câmera, para supostamente aumentar o nível de tensão da cena. Chefões do crime fumam charutos, cercados por seus capangas.
As mulheres serão todas sexualizadas, sem exceção, algo que vale tanto para a delegada, que troca de roupa durante o encontro com Lauriano, optando por vestido mais sedutor, até as dançarinas chamadas de prostitutas na boate. Mas tudo bem, porque no final elas seguram revólveres e também atiram, certo? Não seria essa a construção ideal de uma personagem feminina forte — ou seja, a incorporação de valores e atitudes considerados masculinos?
O problema é que, mesmo nesta cartilha antiquada do cinema brucutu, Do Sul, a Vingança apresenta inúmeros problemas, seja em decorrência do baixo orçamento, seja pelas escolhas estéticas e narrativas. O filme está repleto de tiques, cacoetes e falhas, como se fosse incapaz de escolher uma única linha estética e mantê-la até o final. Em certo momento, surge o letreiro ao lado de um personagem coadjuvante: “Morreu com 2 tiros igual a Pablo Escobar”. Entretanto, o recurso não retorna para outros comentários. O filme ensaia uma explicação ultra didática no início, acerca da geografia e história do Mato Grosso do Sul, ainda que esta explicação não possua nenhuma função narrativa para além das gags de personagens confundindo o Estado com o Mato Grosso.
Além disso, o som de algumas frases se encontra fora de sincronia, a exemplo de “Esse poder que vocês têm, isso me fascina” e “Tá, mas o que o deputado disse na delegacia?”. Metralhadoras claramente não estão atirando. E o que dizer da projeção de uma cena no vinho derramado, ou da trilha sonora insistente em cada interação verbal mais tensa? Ainda existe espaço para um estranhíssimo humor pastelão, cujo tom aparenta decorrer de um filme totalmente diferente (o apresentador do Coach Pod, voltando à cena de olho roxo, segundos depois de levar um soco). Em termos de escolhas estéticas, trata-se de um projeto caótico.
Além disso, nem mesmo explora a contento a região da fronteira brasileira, que lhe parecia tão valiosa a princípio. Nenhum aspecto da política, cultura ou história dos países vizinhos invade a trama, que poderia facilmente se passar em qualquer local com alto índice de criminalidade e desigualdade. Fala-se nos indígenas guaicurus, representados pouquíssimo, e de maneira desrespeitosa — as duas míseras falas de uma mulher indígena ganham letreiros repletos de erros de português, em escárnio de sua língua e identidade.
Embora Jacaré expresse longos pensamentos acerca da nossa fascinação pela violência (numa cena tão prepotente que envolve dança contemporânea de uma mulher vestida de vermelho, em câmera lenta), nada impede que o projeto seja acusado dos mesmos vícios que pretende denunciar. O clímax, sem surpresa, converte-se num acirrado acerto de contas com tiros e fatalidades. “Vamos resolver isso como homem!”, gritam os diálogos. Todo o cinema de ação precisa necessariamente incorrer em machismo para reproduzir o efeito empolgante do gênero? Seria neste elemento em particular que reside nossa imersão e interesse?
É uma pena constatar tantos problemas na obra, que teria alguns trunfos a seu favor. Felipe Lourenço é um ator expressivo, ainda que conduzido com pouca sutileza pela direção. Ele interpreta seu personagem com tamanha seriedade que chega a parecer deslocado da interação ao redor, ao limite da paródia. Em paralelo, o deslocamento progressivo do faroeste do Nordeste à região Centro-Oeste nos ajudaria a discutir a maneira como o Brasil pensa a si próprio. Oeste Outra Vez ajudava a refletir sobre Goiás enquanto cenário de desolação, falta de regras e violência impune. Agora, o Mato Grosso do Sul recebe tal investimento simbólico.
O conservadorismo religioso e a cultura do agronegócio seriam muito interessantes de incorporar num faroeste à brasileira, caso o projeto estivesse realmente disposto a mergulhar nas especificidades locais, ao invés de emular um cinema gringo à la Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. Do Sul, a Vingança demonstra dificuldade de adotar um ponto de vista, uma linguagem, uma reflexão coesa acerca da violência sistêmica. Prefere constatar que ela existe, divertindo-se com um núcleo social percebido como falido socialmente, porem empolgante cinematograficamente. Uma estratégia mais condescendente do que questionadora, sem dúvidas.