“Ou inventamos, ou erramos”. O letreiro apresenta ao espectador, desde o início, o pressuposto da cineasta Albertina Carri em Caiam as Rosas Brancas. Trata-se de uma palavra de ordem tão pretensiosa quanto politicamente assertiva. O espectador que se prepare então às invenções e rupturas com as regras do cinema, da sociedade, da narratividade clássica. Começa-se pela escolha de um elenco e uma equipe inteiramente femininos, focado em mulheres lésbicas. Segue-se uma jornada combinando drama, comédia, paródia, musical, fantasia e certo experimentalismo.
“E assim termina esse conto tremendamente pornográfico. Vampirizado pelo tempo e atormentado pelos espantos”. Como se percebe, até o final, o filme não baixa suas bandeiras. Há grande interesse nesta leitura do cinema queer enquanto recusa de quaisquer regras de gênero — mesmo aquelas do audiovisual, determinadas por pensamentos e olhares cis-hétero-masculinos. A diretora compreende, de maneira acertada, que a representação de subjetividades fora da norma implica na necessidade de uma estética e uma história fora das normas. Para personagens radicais, um filme radical.
Assim, deparamo-nos com a coletividade enquanto protagonista. Cinco ou seis personagens convivem na maioria das cenas, ao longo de uma jornada pelo interior da Argentina, até atravessarem a fronteira e chegarem a São Paulo. Em princípio, a trama gira em torno de uma cineasta, insatisfeita com o longa-metragem que tem desenvolvido. A sinopse sugere que ela está preparando a versão softcore de seu filme pornográfico, em referência a As Filhas do Fogo (título anterior de Carri), porém esta citação metalinguística dialoga somente com o espectador que tenha assistido à obra de 2018. Cansada, a diretora fictícia reúne amigas de filmagem e saem dirigindo a esmo.
Carri parte do princípio que a liberdade — da arte queer, da mulher lésbica, do cinema político e radical — implica no direito (ou seria dever?) de fazer qualquer coisa. A fortuidade se torna meio e finalidade.
O roteiro ensaia algumas motivações, umas mais improváveis que as outras. Uma viajante insiste na necessidade de ajudar Ricky, personagem jamais visível em cena. “Nunca entendi quem é Ricky, nem porque estamos nisso”, contesta a outra. O espectador a acompanha nesta dúvida. Perdidas numa cidade pequena, elas conseguem uma casa para passar a noite. De onde surgiu a residência providencial? São atacadas por motoqueiros, enquanto escutam vídeos pornográficos no celular. De repente, os agressores partem e as deixam em paz. Adiante, sentam-se em plena estrada de terra, por motivos igualmente desconhecidos.
As escolhas incompreensíveis dominam o longa-metragem. Nunca sabemos ao certo o que as personagens desejam, para onde vão, ou quais traços dominam sua personalidade. Agem de maneira aleatória, o que permite a inclusão abrupta da cena musical, a aparição de uma nova personagem no terço final, ou a venda de câmeras cinematográficas num posto de gasolina. A jornada se desenvolve na forma de um brainstorming, comprometido unicamente com o fluxo de pensamento da autora: se ela pode imaginá-lo, decide concretizá-lo. Carri parte do princípio que a liberdade — da arte queer, da mulher lésbica, do cinema político e radical — implica no direito (ou seria dever?) de fazer qualquer coisa. A fortuidade se torna meio e finalidade.
Por isso, resta a impressão incômoda de acompanharmos um filme exibido apesar do espectador, contra ele. Nós que nos esforcemos para embutir algum sentido e significado ao road movie, pois as criadoras não desejam fazê-lo por conta própria. E por que deveriam agradar seu interlocutor, certo? Paira um teor ensimesmado, ou mesmo retórico — como se o simples ato de colocar estas mulheres não-normativas em movimento constituísse um valor em si. Em consequência, pouco importa o que lhes acontecerá, contanto que sigam em frente, beijando-se quando desejam, fazendo aquilo que lhe passe pela cabeça. Terminamos a trama sem as conhecer de fato, ou, pior ainda, sem compreender as motivações de Carri, ou seu ponto de vista a partir de tantas ações orgulhosamente arbitrárias.
Esteticamente, o imperativo da rebeldia leva as personagens a se repetirem (“Mais plantas!”, “Incrível!”, “Não dá para acreditar!”), ao passo que a montagem estica ao máximo as cenas. Caiam as Rosas Brancas aparenta durar muito mais do que o roteiro permitiria, porém, não se trata de apontar uma ou outra cena destoante. Todas elas, sem exceção, aparentam se esticar para muito além das atividades das protagonistas. Começam bem antes de qualquer conflito, e continuam por longos minutos após o desfecho da ação, antes de — enfim — chegar o corte à cena seguinte. As sequências da filmagem inicial, dos motoqueiros, e mesmo do fetiche na cozinha são intermináveis. O elemento mais prejudicial à experiência do longa-metragem reside no caráter voluntariamente modorrento — seria mais uma afronta às regras da dinâmica clássico-narrativa?
Por isso, perdem-se o humor e a autoironia de uma cineasta (Carri) que se contenta em retratar outra cineasta, fictícia (Carolina Alamino), sem rumo, explorando qualquer caminho às cegas, porque sim. A criadora aparenta estar muito contente com sua astúcia, como se tivesse elaborado um projeto inteligentíssimo pelo simples fato de recusar a linearidade, as relações de causa e consequência. Suas personagens não devem nada uma à outra, nem aos passantes da estrada, nem ao espectador, nem à ninguém. O esvaziamento voluntário e ostensivo dos sentidos torna-se gesto político, ainda que soe um tanto pueril em sua visão de mundo.
Na conclusão, as viajantes chegam a uma espécie de oásis natural — o pedido recorrente de “mais plantas” será, enfim, atendido. O percurso talvez se desloque do material ao transcendental, do mundano ao místico. Entretanto, esta pode soar como uma interpretação exagerada para uma obra tão livre, leve e solta, que jamais estruturaria as coisas com tamanha precisão. Qualquer significado caberá ao esforço do espectador, com muita boa vontade para jogar um jogo que pretende expulsá-lo. Ora, a incursão na fantasia chega tarde, e sem aproveitamento real das possibilidades estéticas do cinema de gênero. As mulheres terminam sua viagem tão perdidas quanto começaram. Seria a deambulação um verdadeiro empoderamento?