A História de Souleymane (2024)

A piedade é um humanismo?

título original (ano)
L’Histoire de Souleymane (2024)
país
França
gênero
Drama
duração
93 minutos
direção
Boris Lojkine
elenco
Abou Sangare, Nina Meurisse, Alpha Oumar Sow, Emmanuel Yovanie, Keita Dialo, Younoussa Diallo, Mamadou Barry
visto em
Cinemas

Após tantas histórias de refugiados que fogem de guerras e perseguições políticas ou religiosas em seus países, o diretor e roteirista Boris Lojkine estuda outro fluxo migratório da África à Europa: aquele de pessoas que, provenientes de países pobres, procuram uma vida melhor. Buscam um trabalho digno para enviarem algum dinheiro aos familiares no país de origem, ainda que, para isso, precisem se distanciar daqueles que amam. Não foram obrigados a fugir de suas terras, porém, colocaram-se em risco na travessia, em busca de cidadania digna. Chegando aos países vizinhos, trabalham como entregadores de aplicativo ou em outros subempregos não-declarados.

O caso de Souleymane (Abou Sangaré) soa delicado aos moldes da dramaturgia clássica. Afinal, o herói mente nas entrevistas para demanda de asilo. Estuda um texto escrito por colegas, e afirma ter sido torturado na prisão — onde nunca esteve na realidade. Estima que, deste modo, teria mais chances de conquistar a cidadania francesa e, em consequência, a permissão de trabalho. Afinal, como justificar às autoridades que sua mãe possui problemas de saúde mental, e “somente” deseja lhe proporcionar uma vida mais confortável? O jovem engana, portanto. Vitimiza-se no discurso oficial. Esta representação constituiria um desserviço à causa humanitária? Serviria de munição aos segmentos xenofóbicos, que desmerecem as solicitações dos indivíduos africanos no país?

A obra se aproxima do raciocínio cristão de que o martírio enobrece o homem — quanto maior o calvário de Souleymane, mais digno ele seria de reconhecimento e empatia.

Felizmente, o roteiro toma as precauções necessárias para garantir que se posiciona junto ao protagonista — figurativa e literalmente. Acompanha minuto por minuto de seu dia, registrando cada procura por trabalho, os esforços para fazer as entregas sob nome falso, os malabarismos para garantir uma cama no abrigo municipal mais próximo. Ele liga com frequência para casa, tenta falar com a mãe e a namorada. Ajuda os colegas, ainda que esteja sobrecarregado com a correria dos subempregos. Ainda se solidariza junto às mulheres africanas que declaram o estupro sofrido no trajeto ilegal (momento em que o projeto se aproxima da linguagem documental, garantindo que não se esqueceu dos refugiados de fato).

A História de Souleymane adota uma linguagem consagrada do realismo social. A câmera se cola aos passos de seu herói quando ele sobe e desce escadas, quando pedala pelas avenidas lotadas de Paris, ao esperar na recepção do serviço de imigração, ou fazer a fila para tomar banho no abrigo. Não é por acaso que Lojkine recorre ao diretor de fotografia Tristan Galand, acostumado a trabalhar com os irmãos Dardenne. Trata-se de uma forma de cinema semelhante, movida pela crença de que a solidariedade decorre da máxima proximidade com o protagonista. Por esta lógica, se acompanharmos os minutos precisos do seu dia, e testemunharmos tamanho esforço, seremos mais suscetíveis de nos solidarizar com a sua causa. Ainda que minta para o governo francês, o jovem possui causas evidentemente nobres.

Os criadores sabem executar com excelência esta cartilha do cinema de proximidade. Imprimem um ritmo bastante dinâmico ao drama munido da tensão e urgência dignas de um thriller. Abou Sangaré, imigrante sem experiência dramática prévia, que ainda postula de fato à cidadania francesa, entrega-se ao jogo cênico sem vaidade, apresentando uma composição crua que tanto agrada às métricas do cinema-verdade. Possui evidente familiaridade com as situações, a língua, os espaços que frequenta. Logo, a percepção de valor da obra decorre desta conjunção entre a aparência de realidade (a “verdade” de trazer imigrantes para emularem versões de suas próprias vidas) e um senso de controle (dos enquadramentos, da luz, da montagem) possível somente à ficção.

Entretanto, os possíveis questionamentos a esta forma de cinema decorrem da linha tênue que separa a solidariedade da exploração da miséria alheia. Souleymane sofre muito neste percurso: ele é humilhado por clientes, expulso de restaurantes, recusado em abrigos, atropelado por um carro, abandonado pela namorada, agredido por um conhecido, desacreditado pela agente da imigração. Há pouco respiro na narrativa que se encarrega de provar que a vida do herói é, de fato, duríssima. Contra os franceses da extrema-direita, que enxergam migrantes enquanto aproveitadores dos benefícios locais, Lojkine oferece uma visão de dedicação ininterrupta por parte do rapaz, da manhã à madrugada. 

A obra se aproxima do raciocínio cristão de que o martírio enobrece o homem — quanto maior o calvário de Souleymane, mais digno ele seria de reconhecimento e empatia. Ou, melhor dizendo, de piedade. No entanto, um indivíduo precisaria se sujeitar à exploração infinita para merecer nosso afeto e consideração? Precisamos nos compadecer de sua situação por ser tão diferente da nossa? Em outras palavras, ele seria mais digno de estrelar um filme e arrancar algumas lágrimas pelo fato de nos mostrar que, felizmente, não temos uma vida tão difícil quanto a dele? O rapaz corre o risco de servir de contra-exemplo à boa consciência burguesa.

Além disso, esteticamente, A História de Souleymane também desperta alguns questionamentos. Galand opta por uma imagem extremamente contrastada e saturada. Isso implica numa diferença intensa entre as luzes claras e escuras, além de cores fortíssimas, capazes de conectar esta Paris de pobres e oprimidos com um universo levemente fantástico, desconectado do cotidiano de classe-média. Em se tratando de atores negros retintos, teria sido fundamental pensar numa iluminação que favorecesse a expressão do ator principal. Ora, em diversas cenas, os traços de Sangaré se perdem na escuridão. Talvez o fato de termos diretor, roteiristas, produtores e diretor de fotografia brancos expliquem a baixa importância percebida na fotometria da pele negra.

Após um tormento crescente, Souleymane enfim ganha a sua “cena do Oscar”, ou seja, o momento em que pode extravasar todos os sentimentos minimizados até então, face à prioridade de trabalhar, acatar ordens e seguir em frente. O espectador, por extensão, ganha a oportunidade de chorar, numa espécie de recompensa emocional ao percurso tão árido. Mesmo esta concessão à narrativa clássica (numa estrutura típica dos dramas hollywoodianos) soa como uma piscadela ao bem-estar do público. Lojkine e sua equipe buscam abordar a tensa realidade dos imigrantes, porém, sem incomodar de fato o público de classe-média. Deseja fugir ao sentimentalismo, contanto que reserve um instante para a vazão das emoções. 

O diretor se confronta à realidade da questão migratória, à condição de nunca apontar culpados, estudar a origem do problema, nem alternativas aos impasses. Evita criticar o governo francês, os agentes migratórios e os demais estrangeiros que exploram Souleymane. Este contexto de violência sistêmica parece não ser culpa de ninguém. Desta maneira, o longa-metragem se contenta em demonstrar (com atenção e óbvia boa-vontade) um cenário adverso, embora jamais se questione de fato acerca dos mecanismos políticos e sociais que produzem tantos Souleymanes na França contemporânea.

A História de Souleymane (2024)
6
Nota 6/10

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