Imagine uma cena da cidade de Buenos Aires. Câmera na mão, enquadrando a cidade deitada em ângulo de 90º. Os personagens conversam entre si, gerando uma legenda espremida no canto direito da imagem. Em simultâneo, a diretora emite seus próprios pensamentos, legendados à esquerda com uma mistura de inglês e espanhol (além da versão em português). Conforme enquadra frequentadores de um ringue de patinação, comenta por meio dos letreiros mudos: “Agora olhe este patinador de jaqueta simples”. Diante da imagem da chuva sobre uma rodoviária, as legendas comentam: “Veja que tremendo é o próximo vídeo. Fico quase sem palavras”.
A diretora Lucía Seles demonstra um prazer deliberado de fazer diferente, contrariamente às regras da narrativa clássica. Por isso, em Fire Supply (“título que, aliás, é lindo”, em suas palavras) não possui um protagonista, mas alguns grupos de personagens alternando-se de maneira quase aleatória pela montagem. Nenhum deles se condiciona a um conflito específico: somente passeiam pela cidade, decidem fazer uma tatuagem, acendem um cigarro, procuram por roupas novas no centro comercial. Decidem fazer um concurso de quem fuma mais bonito; estipulam o prazo de 56 horas para encontrar o grande amor, e pensam em rituais funerários para o enterro da cadela do chefe, chamada Pia Girafa.
Parte desta estranheza voluntária se traduz numa bem-vinda leveza. Em contrapartida, as escolhas artísticas beiram a aleatoriedade. A diretora opera em modo brainstorming.
Parte desta estranheza voluntária se traduz numa bem-vinda leveza. Este é um filme agradável, despojado, que se recusa a emitir grandes teses a respeito do mundo. A autora confessa o prazer de ver pessoas andando, “carregando as suas coisas”, ou então “andando e sentindo” — título de um curso ministrado pela Tenista (Laura Nevole). Por isso, segue os personagens com a câmera na mão, tremendo por todos os lados, numa captação digital que abraça o amadorismo ao invés de disfarçá-lo. Seles demonstra apreço por um cinema do impulso, com mínimo planejamento, e afeito às inspirações do momento. Acredita na capacidade de adequar sua câmera ao mundo, ao invés de condicionar o mundo às necessidades da câmera.
Em contrapartida, as escolhas artísticas beiram a aleatoriedade. A criadora gosta de introduzir o número “16” no meio das legendas, por motivos desconhecidos. Repete procedimentos que lhe soem interessantes (a frase sobre “ser mãe dos meus CDs”), e adia pequenos acontecimentos para convertê-los em surpresas (a espera de mais de duas horas para revelar se Luján, interpretada por Gabriela Ditisheim, fará ou não sua tatuagem de caneta Bic). O projeto com 2h36 de duração efetua uma pequena pausa de três minutos, insuficiente para servir como interlúdio, mas o bastante para provocar uma ruptura de expectativas.
A diretora opera em modo brainstorming, saturando as imagens e o som com todos os penduricalhos que lhe pareçam interessantes. Ocasionalmente, aumenta tanto o volume da trilha sonora que dificulta a compreensão dos diálogos; em outros momentos, solicita ao espectador, por meio de letreiros, que nos atentemos à garota estudando no banco da rodoviária. Ora, não bastaria, para isso, simplesmente voltar a câmera à personagem em questão? Fechar o enquadramento nela, segurar por mais tempo aquela imagem? Não é assim, afinal, que a direção e a montagem (ambas assinadas por Seles) nos indicam o que pretendem mostrar?
Fire Supply sustenta esta impressão de conter tanto o filme quanto seu making of e a sessão comentada pela diretora. Trabalha as inserções de texto enquanto ferramentas pop, propícias aos tempos de redes sociais — reforçadae por comentários “anti-David Bowie” e acerca da beleza moderada dos personagens de Almodóvar. A montagem investe em inúmeros flashes, seja de cenas desconexas, seja de cachorros passeando no complexo de tênis e na rodoviária. A própria duração extensa, para um filme com “nada a dizer”, entre muitas aspas (ou seja, que se recusa a elaborar discursos complexos a partir de uma história linear) reforça a impressão de um gesto de rebeldia. Esta iniciativa se justifica, em primeiro lugar, por não ser como os outros filmes.
O senso de desobediência se expande aos personagens, a quem se permite alto grau de infantilização. Ao descobrir que o pretendente da mãe idosa tem uma vida amorosa autônoma, o Sanjuanino (Ignacio Sánchez Mestre) sai correndo, aos prantos, indignado com a crueldade do destino. A morte de Pia Girafa, repetida inúmeras vezes em diálogos, motiva a interrupção de uma aula de tênis e motiva conversas pesarosas nos vestiários. A Tenista decide levar seu colega, o Contador (Pablo Ragoni) num encontro com o ex-afeto, para despertar ciúme no rapaz. Como se percebe, os personagens nem mesmo têm nomes, fruto de mais uma provocação simples da narrativa.
Felizmente, os atores demonstram notável intimidade com esta forma de humor do absurdo — muito provavelmente por terem trabalhado a autora em inúmeras oportunidades anteriores. Não sobrecarregam falas obviamente cômicas, e tratam com respeito figuras muito próximas da ridicularização. Compõem uma espécie de ciranda tragicômica de gente comum, de pouco sucesso ou qualidades — nos quais ainda se insere a mãe idosa, encantada com absolutamente tudo o que vê, e o irmão ausente de Luján, apaixonado por táxis.
Fire Supply se torna mais expressivo quando interfere menos na pós-produção, acrescentando letreiros condicionando nossa leitura da obra, ou efetuando cortes abruptos da cena em nome do direito e prazer de fazê-lo. Infelizmente, Seles se interpõe com frequência, inclusive para despejar ao espectador conflitos graves que nunca serão desenvolvidos (a hepatite que quase a matou). Há tantos elementos interessantes quanto frágeis nesta salada conscientemente desigual, inchada, pouco coesa. A quem enxerga qualquer forma de ruptura com as normas enquanto valor em si, se encantará com o resultado. Quem exige que a desconstrução de um formato implique na elaboração de novos significados, poderá sair um tanto decepcionado com a experiência.