O cinema que precisa correr

De Michael Bay a Paul Thomas Anderson

Quis o acaso do circuito comercial que chegassem ao cinema uma quantidade expressiva de filmes onde os personagens principais correm feito malucos pelas ruas da cidade. Ora, essa seria uma característica comum a produções de ação, quando os heróis estão em busca da captura do vilão, ou se apressam para salvar um familiar em perigo. O movimento seria igualmente comum em suspenses nos quais o protagonista se vê perseguido por uma presença oculta.

No entanto, as produções em cartaz vão além destas motivações básicas. Os personagens de Licorice Pizza (2021) e A Pior Pessoa do Mundo (2021) não precisam correr: ninguém os procura, tampouco têm pressa de chegar a algum lugar. Em Amor, Sublime Amor (2021), mesmo fora das disputas entre gangues locais, os personagens ocupam as ruas, correm com suas latas de tinta, movem-se pelo imperativo de se mover. Até num filme de ação convencional, como Ambulância: Um Dia de Crime (2022), os personagens se veem cercados pelos adversários, e apesar da falta de saída, seguem em frente. “Para onde estamos indo?”, pergunta um dos motoristas, escutando como resposta: “Não sei. Vamos!”

Assim, a produção de Michael Bay surpreende para além dos evidentes tiros, explosões, montagem ultrafragmentada e câmera tremida habituais em seus trabalhos. Os irmãos e ladrões Danny Sharp (Jake Gyllenhaal) e William Sharp (Yahya Abdul-Mateen II) aceleram pelas ruas da cidade enquanto pensam no próximo passo para escapar da polícia. É preciso elaborar ideias em movimento, a 90 km/h, enquanto um homem é operado no banco de trás da ambulância. Danny Sharp diz a si próprio: “Pense, Danny, pense. Preciso pensar rápido”

Ambulância: Um Dia de Crime (2022)

Enquanto isso, as frases de aceleração se multiplicam nos diálogos: “Isso aqui é uma locomotiva! Nós não paramos!”, “Somos tubarões, não paramos”, ou apenas a provocação “Nós não paramos!”, seguida de “Nós também não” dos adversários. Os personagens e o público são vencidos pelo cansaço. A partir do dilema inicial, as ações se sucedem por inércia, sem a necessidade de novos instigadores. A dupla central corre porque corria até então, e não enxerga motivos para interromper seu percurso agora. 

Em Thelma & Louise (1991), Ridley Scott havia coincidido a necessidade quase automática de seguir adiante com um ímpeto de libertação. Sua aventura combinava ação com contemplação e reflexão. Já Ambulância: Um Dia de Crime se opõe ao pensamento, considerado uma fraqueza ou um despropósito ao gênero. Corre-se para não pensar, porque caso os heróis recebessem a oportunidade de respiro, questionariam seus atos. Ao invés de prejudicar a lógica, o dinamismo autoritário e artificial constitui a razão de ser do projeto.

Em Licorice Pizza e A Pior Pessoa do Mundo, corre-se por amor, pela juventude, pelo ímpeto de abraçar o mundo. Algumas pessoas se surpreenderam com as disparadas de Alana (Alana Haim) e Gary (Cooper Hoffman) pelo centro do vale de São Fernando. Aqui, o movimento se converte numa exteriorização da felicidade: ao invés de gritos ou da expressão de contentamento exacerbado, que seriam facilmente registradas num close-up, o diretor Paul Thomas Anderson prefere externalizar a euforia no corpo, levando os jovens a ocuparem a cidade sem rumo preciso. 

Licorice Pizza (2021)

Não por acaso, no ápice do amor romântico, os dois se trombam na calçada, correndo em direções opostas, um ao outro. Em caso de dúvida, de incerteza, eles correm. A estagnação percebida nos rumos do país (a guerra do Vietnã que nunca se encerrava, a crise econômica do governo do início dos anos 1970) se contrapõe à necessidade de Alana e Gary em “fazer algo a respeito”. Ele inventa novos planos de negócios fadados ao fracasso. Ela se envolve de maneira inconsequente na política e no show business. Aqui, novamente, correr se torna oposto de pensar. Em contrapartida, Paul Thomas Anderson flagra as disparadas através de longos planos-sequência, em contraste com a dispersão profunda de Michael Bay.

Para A Pior Pessoa do Mundo, o movimento corresponde à fantasia. Nesta produção, Julie (Renate Reinsve) corre precisamente para pensar. Durante as caminhadas aceleradas na volta de uma festa, e enquanto acelera rumo à cafeteria onde trabalha o novo amor de sua vida, ela elabora a necessidade de romper com o namorado atual. Mais madura do que os protagonistas dos dois filmes mencionados anteriormente (embora não necessariamente mais velha), ela reflete longamente acerca de suas escolhas afetivas. Mesmo assim, a corrida surge num instante de euforia e alegria extremas.

De todas as obras citadas até agora, a norueguesa é aquela que melhor coincide a disparada veloz com a magia. Havia um caráter fantástico nos feitos dos ladrões de Michael Bay (uma cirurgia do baço finalizada com uma presilha de cabelo), e também nos jovens desengonçados de Paul Thomas Anderson (o mundo jamais os impede de correr, nem fornece obstáculos — a cidade pertence aos dois). Para Joachim Trier, no entanto, a iniciativa de Julie faz com que o resto do mundo se congele: o tempo é determinado pelas emoções da protagonista, numa bela metáfora do sentimento amoroso.

A Pior Pessoa do Mundo (2021)

Por isso, enquanto corre, ela observa as ruas com pessoas paradas, carros interrompidos em pleno movimento e contenta-se do feito digno de uma super-heroína. Em sua mente, ela se torna poderosa, capaz, dominante. Na volta do encontro, percebe um casal se beijando no parque e “corrige” as mãos da moça, colocando-as mais perto das nádegas do rapaz beijado. Ela se felicita da traquinagem e pisca para o espectador. Neste aspecto, a correria de Julie se assemelha àquela de Alana e Gary: enquanto dispensam o resto do mundo para privilegiarem apenas seus impulsos íntimos, assemelham-se a crianças (birrentas ou divertidas, a gosto). 

Para o bem ou para o mal, há um caráter lúdico que beira a infantilização no gesto de seguir correndo porque sim. Estes adultos captam da fase infantil certa pureza e espontaneidade,  numa época de menos interditos sociais. Por outro lado, revelam-se frequentemente egocêntricos, egoístas, irresponsáveis, como convém aos pequenos. Em todos os casos, os cineastas abraçam com carinho suas figuras falhas, porque apaixonadas (por uma pessoa ou uma ideia). Todos, sem exceção, serão desculpados nas narrativas pelos acidentes de percurso.

Estas reflexões conduzem ao amor igualmente lúdico, infantil e exagerado de Amor, Sublime Amor, talvez o filme mais distante da realidade dos quatro mencionados (incluindo Ambulância). Sob pretexto de questionar o racismo, a xenofobia e a segregação social nos Estados Unidos do século XX, Spielberg resgata com mínimas alterações uma fábula que já soava antiquada em sua época. Voltam à cena o amor à primeira vista, o afeto superando obstáculos, o sacrifício romântico em detrimento de si próprio.

Se era improvável, do ponto de vista da verossimilhança, que Will e Danny corressem sem ter para onde ir, que Gary e Alana fugissem de perigo nenhum, e que Julie congelasse o mundo, soa ainda mais surpreendente a maneira como os Sharks e Jets ocupam as ruas e bailes de um bairro em vias de desaparecimento. O gênero musical explica grande parte da estranheza: segundo estas regras específicas, é comum que as pessoas saiam dançando e cantando em meio a uma situação de perigo, por exemplo. Gangues violentas enfrentam-se com passos de dança clássica, misturada à moderna. Ofendem-se com pliés, grand jétés, piruetas.

Amor, Sublime Amor (2021)

Em contrapartida, correm ainda mais nas ruas que se interrompem para a sua existência. Tony (Ansel Elgort) e María (Rachel Zegler) ocupam um cenário de forte aparência teatral, semelhantes a um grande estúdio ou galpão. O ápice da tragédia romântica ocorre numa rua movimentada, desta vez convenientemente vazia, para que a dupla central possa correr em direção um ao outro e se confrontar ao destino que lhes aguarda. Quando mata o irmão de María, Tony parte feito louco em direção à amada, ao invés de se esconder. Ela, em paralelo, dispara pelas ruas, assim como fará Anita (Ariana DeBose), sob ordens da cunhada.

O cinema sempre correu, mas talvez por motivos diferentes. Neste momento em particular, a ação desprovida de conflito (ou seja, correr por correr) chama atenção por representar um gesto cinematográfico, uma maneira encontrada pelos autores para exibirem seu arsenal técnico e estético (a megalomania de Spielberg, os planos-sequências de Anderson, os efeitos visuais de Trier, a câmera-em-todos-os-lugares de Bay) enquanto traduzem em imagens a fúria dos sentimentos. 

Até por isso, com exceção de Ambulância: Um Dia de Crime, os demais evitam o tradicional close-up para revelar a felicidade ou fervor dos protagonistas — a câmera o faz através do imperativo do movimento. Não cabe mais aos atores, sozinhos, transmitirem sentimentos, e sim à estética, os enquadramentos, à profundidade de campo, à duração dos planos. O amor contamina à estética, controlando-a. Outros filmes em cartaz poderiam se juntar a este grupo: o magnífico Adeus, Idiotas (2020), cujo cartaz literalmente representa um casal correndo de mãos dadas; No Ritmo da Vida (2021), com as pedaladas frenéticas da protagonista; Belfast (2021), com um garotinho encorajado pela garota mais velha a roubar lojas do bairro. 

Em todos os casos, a mise en scène insiste em coincidir a partida a plenos pulmões com a vontade de abraçar o mundo, conquistá-lo, devorá-lo. Os personagens correm para fugir de problemas ou ir de encontro a eles — em outras palavras, movem-se para encontrar novos caminhos. Nesta fase de saída da pandemia de Covid-19, quando ficamos tanto tempo presos em nossas casas, sentados nos sofás, encantam as novas produções passadas em locações externas, ao ar livre e de dia, onde os personagens podem se jogar nas multidões, nas avenidas, nos conflitos. Um cinema que reata com a evidente vocação social e política da imagem.

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.