Em fevereiro de 2021, entrevistei um dos diretores que mais admiro para o Papo de Cinema: Robert Guédiguian, que tinha seu filme mais recente, Gloria Mundi (2019), exibido no circuito comercial brasileiro. Devido ao contexto da pandemia, discutimos o fechamento das salas de cinema, assim como os entraves à produção e à distribuição de filmes. O streaming era discutido entre os profissionais do audiovisual na condição de um amigo possivelmente traiçoeiro: o formato online seria responsável pela ruína financeira das salas de cinema?
O diretor e grande intelectual francês respondeu a estas perguntas fornecendo as ponderações necessárias. Elogiou a existência das plataformas onde as produções pudessem ser vistas no período de dificuldade. Ressaltou a quantidade expressiva de trabalhos criada por estas empresas, e as vantagens de levar filmes a lugares sem acesso ao circuito tradicional — para muitas pessoas, o acesso ao cinema passa exclusivamente pelo meio virtual. No entanto, fez uma ressalva grave: o streaming não permitiria inserir um filme na história do cinema. “A obra perde a autoria dentro das plataformas”, explicou.
A ideia me provocou certo choque, e confesso que não compreendi seus significados de imediato. No entanto, ficou plantada na memória como uma semente que demora alguns meses a germinar e portar frutos. Aos poucos, o conceito se esclareceu face a exemplos concretos, e compreendi o motivo de a frase ter ressoado de maneira tão pessoal: ela traduzia um sentimento que me incomodava, mas que eu era incapaz de elaborar até a entrevista.
Neste período pandêmico, Breve Miragem de Sol (2019) resolveu não esperar a retomada do circuito comercial e apostar no lançamento em plataformas virtuais. Compreende-se a angústia dos criadores, dotados de uma obra potente em mãos, e sem saber quando poderiam mostrá-la. Os colegas críticos chegaram a cogitar que o ousado drama de Eryk Rocha, estrelado por Fabrício Boliveira e Bárbara Colen, pudesse representar o Brasil no Oscar. Mas isso não aconteceu. Uma vez lançado em streaming, o filme desapareceu — ou melhor, se diluiu num oceano de audiovisual. Falou-se pouco de sua estreia, de seu impacto, da estranhíssima escolha pelos close-ups claustrofóbicos.
Em paralelo, a Netflix recebeu Klaus (2019), uma das animações natalinas mais interessantes e questionadoras de que me lembro no cinema recente. Cheguei a escrever a respeito das inclinações marxistas da história, algo que tinha me surpreendido e fascinado. Alguns colegas assistiram ao filme, porém quando mencionava o título aos amigos, em nossas conversas, eles se mostravam confusos quanto à produção que eu citava. Seria diferente de Crônicas de Natal (2018)? O título não seria outro, Operação Presente (2011)? Essa era a história da menininha Angela, que tenta reunir a família para as festas de fim de ano, certo?
Há poucas semanas, o mesmo serviço lançou um novo drama assinado por Richard Linklater: Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial (2022). Poucas pessoas estavam cientes do fato que o diretor cultuado preparava um projeto novo. Chegando à plataforma, despertou certa atenção durante poucos dias, antes de ser substituído pelo lançamento de um novo filme, pelo acontecimento mais recente do reality show do momento, e pela barbaridade diária proferida pelo presidente da república. Gerou boas críticas, críticas ruins? Não se sabe. Perdeu-se.
Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial despertou alguma atenção durante poucos dias, antes de ser substituído pelo lançamento de um novo filme, pelo acontecimento mais recente do reality show do momento. Gerou boas críticas, críticas ruins? Não se sabe. Perdeu-se.
Cinco anos atrás, um filme dirigido por Richard Linklater teria despertado frisson considerável no circuito cinéfilo. Um novo drama de Pedro Almodóvar disponibilizado online, caso de Mães Paralelas (2021), teria suscitado inúmeros dossiês, textos, vídeos de prós e contras, listas de melhores filmes do cineasta. Uma animação excepcional como The House (2022) motivaria inúmeros comentários, assim como Matrix Resurrections (2021), um verdadeiro acontecimento para a cultura pop, e a fantasia trash Ghostland: Terras sem Lei (2021), no qual Nicolas Cage tem os testículos explodidos por uma bomba acoplada ao escroto.
Entretanto, esses filmes duraram o tempo de um fenômeno viral na Internet — ou seja, pouquíssimo. Eles seguem disponíveis em seus respectivos serviços, algo digno de celebração. Em contrapartida, ignora-se a plataforma onde se encontram (Netflix? Amazon? Star+, Apple TV+, Paramount+, Disney+, Hulu, Mubi, alguma outra?), porque recebem, dentro destes espaços, atenção idêntica àquela de qualquer telefilme, minissérie ou novo volume de uma franquia infantil. Neste universo, as obras se equivalem: se as salas de cinema desenvolviam uma forma de curadoria — condicionada aos imperativos comerciais, é claro —, estes serviços no atacado aceitam tudo, porque precisam de volume de lançamentos para justificar a assinatura mensal.
Além disso, tentam coincidir a percepção de quantidade com aquela de boa relação custo-benefício: está vendo quantos filmes você tem à disposição, pelo valor equivalente a um único ingresso de cinema? Enquanto isso, as estratégias de divulgação, concentradas em mídias sociais, priorizam poucos títulos merecedores de tuítes, postagens e vídeos promocionais. Para a Netflix, A Barraca do Beijo interessa mais do que Apollo 10 e Meio; para o Amazon Prime, é preferível destacar As Agentes 355 à chegada de títulos como Tubarão e Touro Indomável, espremidos entre comédias familiares de cães falantes.
Imagine um multiplex onde houvesse apenas cartazes e os títulos dos maiores blockbusters dispostos na entrada. Os filmes independentes, também disponíveis em menor escala, teriam os cartazes menores pregados pelos corredores, disponíveis somente ao olhar do espectador mais atento. Nem distribuidores, nem exibidores têm condições financeiras e práticas de destacar a quantidade de obras lançadas por semana: se antes chegavam dez filmes por semana, em média, hoje eles se contam às dúzias, ou quase à centena, somando os filmes de múltiplos serviços de streaming, as séries, os espetáculos de stand-up e afins.
Para a crítica de cinema, a multiplicação de obras e janelas de exibição constitui um paraíso e um inferno. A função se aproxima daquela do pesquisador que garimpa sebos da cidade em busca de obras raras escondidas entre livros empoeirados de Danielle Steel e volumes de autoajuda de um coach qualquer. Há preciosidades, sem dúvida, porém como encontrá-las? A fortuna crítica se apequena, visto que o esforço se dispersa: nenhum veículo dá conta de escrever sobre todos os lançamentos, precisando efetuar recortes específicos que deixam muitas obras possivelmente interessantes de fora.
Os críticos de vertente autoral se encontram face a um muro. A marca do diretor-autor, espécie de eixo em torno do qual este pensamento se estrutura, será deixada em segundo plano, quando não suprimida dos destaques nos catálogos online. A aparente democratização deste processo poderia soar positiva — de repente, todas as obras recebem tratamento igualitário —, no entanto, expõem as obras à lei do mais forte, na qual obviamente os blockbusters possuem maior aporte para chamar atenção do público.
Os críticos de vertente autoral se encontram face a um muro. A marca do diretor-autor, espécie de eixo em torno do qual este pensamento se estrutura, será deixada em segundo plano, quando não suprimida dos destaques nos serviços de streaming.
A selva do mundo digital seria de fato igualitária apenas se, uma vez inseridos num serviço virtual, todas as obras ganhassem atenção e espaço semelhante. Este seria o equivalente de uma corrida de Fórmula 1 onde todos os corredores possuíssem veículos idênticos. Nesta situação hipotética, poderíamos comparar apenas competidores, sem refletir acerca da potência de suas máquinas. Ora, Netflix, Amazon, HBO Max e os outros destacam sobretudo os motores em detrimento dos corredores.
O cinema nacional, os filmes minoritários e arriscados se tornam particularmente prejudicados pelo crescimento desordenado da oferta. Ironicamente, pequenos documentários que teriam desaparecido das salas em três semanas agora se encontram lado a lado com o novo Homem-Aranha. Não ironicamente, estes títulos terão uma dificuldade maior de ser descobertos, e de estimular a audiência a apertar o play, em relação a milhares de ofertas mais chamativas e midiáticas. A suposta horizontalização da oferta constitui um aspecto perverso da estrutura atual.
Além disso, o conteúdo nacional produzido por uma empresa estrangeira não constitui propriedade intelectual brasileira. Embora dirigida por brasileiros, com atores e técnicos locais, uma série elaborada por iniciativa de uma empresa multinacional, através de aporte financeiro estrangeiro, será condicionada aos interesses estratégicos de outros países. Filmes e séries da Netflix foram fundamentais para empregar trabalhadores brasileiros do audiovisual durante a pandemia, e continuarão cumprindo este papel nesta fase posterior ao ápice da crise sanitária. No entanto, nunca poderão se substituir ao financiamento público, que garantiria, em tese pelo menos, a independência criativa.
Vale frisar: este artigo não se posiciona contra o streaming, apenas atesta que as plataformas e as salas de cinema desempenham funções diferentes, razão pela qual precisam ser protegidas, ambas, a partir de regras distintas. Esta reflexão tampouco prega uma hierarquização entre filmes bons e ruins dentro de serviços online — uma proposta que seria inerte e ingênua. Em contrapartida, cabe prestar atenção à ausência de organização entre obras, e à pouca transparece quanto à entrada e saída dos catálogos. O cinema, sobretudo aquele brasileiro e independente, se esconde agora à luz do dia, diante dos nossos olhos. Ele se encontra em todos os lugares, e em lugar nenhum.
Como serão interpretados, num futuro próximo, os títulos disponibilizados somente em meio virtual? Vamos nos lembrar de pérolas como A Vastidão da Noite (2019), Shirley (2020) e Nunca Raramente Às Vezes Sempre (2020) da mesma maneira que recordamos os títulos para os quais nos deslocamos até a sala, escolhemos o título, compramos na bilheteria e então assistimos em um momento específico, ao lado de amigos ou amantes? O que resta do cinema enquanto espetáculo, enquanto experiência ritualística e coletiva? Quem se lembra das últimas produções de Spike Lee, dos irmãos Coen, de David Fincher e de Kore-Eda, lançadas diretamente em formato virtual?
Em especial, cabe questionar de que modo estudaremos o mercado de cinema no futuro, na ausência de registros confiáveis dessas estreias-fantasma, das bilheterias e do número de visualizações. Como as inclusões e supressões abruptas de títulos no calendário e a chegada silenciosa de grandes obras moldará nossa percepção de sucesso, de qualidade, e de acesso democrático ao audiovisual? O cinema também se prejudica enquanto sintoma de uma época, e traço para o futuro. É possível que, justamente enquanto sintoma da época, reflita um tempo de esquecimento, de desinformação e multiplicação de dados ao invés de conhecimento. Muitos filmes passarão pelos olhos, sem necessariamente marcarem a cultura e os espíritos dos nossos tempos.