A sessão de um filme perdido num lugar proibido

Na última sexta-feira, 13, as luzes voltaram a se acender na Cinemateca Brasileira. Após cerca de dois anos fechada à força pelo atual governo, que brada contra a produção artística e toma as chaves da instituição com ajuda de força policial, o maior acervo cinematográfico da América Latina voltou a cumprir sua vocação: receber pessoas e filmes.

O título escolhido para esta sessão inaugural possui forte carga simbólica: A Praga, de José Mojica Marins. A seleção de uma obra de horror para uma sexta-feira treze possui apelo de público, o que reforça a vocação popular da instituição. No entanto, a importância deste filme ultrapassa questões de gênero cinematográfico: trata-se de uma produção realizada em 1980, e considerada perdida pelo próprio cineasta, até ser reencontrada em 2007 e restaurada por Eugênio Puppo.

O processo foi bem detalhado em um dos diversos mini documentários apresentados antes da sessão principal. Além das potentes falas de Puppo e dos filhos de Mojica Marins, os espectadores assistiram a três vídeos: a respeito dos trabalhadores da Cinemateca; do incêndio que destruiu mais de 40 toneladas de filmes raros e inéditos, e do esforço de restauração de A Praga.

Eugênio Puppo e José Mojica Marins. Fonte: Divulgação

Após a descoberta dos rolos de película, foram necessários quatorze anos para ordená-los, recuperá-los, gravar novamente o som perdido (o que implicou na contratação de uma colaboradora surda, especializada na leitura labial), filmar cenas novas com o artista falecido em 2020, além de digitalizar e finalizar o filme. O média-metragem consistiu num raro esforço entre equipes dos anos 1970-80 e 2010-2020, que não se conheceram de fato, porém contribuíram ao mesmo projeto.

É difícil não enxergar nos esforços de restauração um paralelo com a luta hercúlea da Sociedade Amigos da Cinemateca em reabrir este espaço. Os pedaços de película colados por Puppo e equipe, ao longo de mais de uma década, se refletem na proteção e cuidado do acervo audiovisual em escala mais ampla, efetuado por dezenas de peritos em conservação e arquivamento. Estes foram sumariamente demitidos com o fechamento da instituição, sem receberem os devidos direitos trabalhistas.

A Praga representa uma união entre duas gerações distintas de cineastas, que atravessaram governos e momentos radicalmente diferentes.

“Resiliência” e “resistência” foram as palavras da noite, repetidas nos discursos repletos de furor e de afeto — dois sentimentos complementares e bem-vindos num país em crise. “Tentaram enjaular a cultura”, explicou com impressionante clareza e dom de oratória o filho do cineasta, Crounel Marins. Ele também desempenhou funções de produção durante a primeira fase de A Praga, e felicitou o respeito de Puppo com a visão artística de seu pai.

A exibição inédita reuniu duas gerações distintas de cineastas que atravessaram governos e momentos radicalmente diferentes: Marins, na reta que levaria à democracia dos anos 1980, e Puppo, na transição para a extrema-direita e na preparação anunciada de um golpe eleitoral em 2022. Juntos, oferecem ao espectador um terror popular, de aparência fabular, realizado por um artista que sempre precisou driblar dificuldades econômicas. Mojica Marins foi considerado “maldito” em seu tempo — mas não seriam todos os artistas “malditos”, hoje em dia, para um presidente que repudia a arte?

HQ “A Praga”, que serviu de referência ao filme

Deste modo, é difícil observar esta fábula de horror como um filme tradicional, ou seja, uma produção criada em tempo habitual e exibida em condições tradicionais. Trata-se de uma obra cujo roteiro nasceu nos anos 1960, antes de ser filmada em 1980, reencontrada em 2007, finalizada em 2021 e exibida pela primeira vez em 2022. Esta seria a obra da(s) retomada(s) por definição, costurando episódios distintos de paralisação e sustentação do cinema nacional. Entretanto, este apontamento não pretende reforçar o caráter romântico da precariedade financeira e institucional: teria sido mais proveitoso se o diretor tivesse recebido a oportunidade de finalizar o projeto e exibi-lo em sua época.

Em termos de estrutura, foram adotados contornos clássicos: Juvenal e Marina constituem o jovem casal perfeito, fértil e sexuado desta narrativa. Eles decidem esfregar sua felicidade diante da casa pobre de uma bruxa velha e amargurada, que pune o príncipe e a princesa pela vaidade. Ele passa a sofrer com pesadelos intermináveis e, sem dormir, desenvolve um comportamento agressivo. Pior do que isso, torna-se impotente, algo que fere seu sentimento de masculinidade.

O resultado carrega a felicidade de ter sido enfim viabilizado, e a tristeza de ter sido perdido em primeiro lugar. O teor agridoce acompanha aquele provocado pela reabertura da Cinemateca Brasileira.

A virilidade sempre constituiu um ponto essencial nas obras de Mojica. A obsessão de Zé do Caixão em conceber um filho perfeito com uma mulher à altura de suas ambições conduz à idealização do sexo e da procriação, e também à sensação de inaptidão do homem que cria uma expectativa de performance irreal para si e para a parceira. Incapaz de realizar a utopia, parte para a violência de gênero. Juvenal desempenha um papel semelhante: uma vez transformado em monstro, redescobre-se capaz de penetrar e “comer” Marina novamente, de modo próximo ao literal.

Em certos momentos, a obra despertou risos na plateia. A maneira de filmar um projeto de baixíssimo orçamento, nos anos 1980, com vísceras e cadáveres elaborados a partir de recursos tão apartados dos nossos tempos, provocou estranhamento. Às vezes, rimos quando não sabemos como reagir: o homem ri do que desconhece, diz o provérbio. Além disso, o estilo extremo de Mojica sempre acolheu o humor, a catarse. O horror, de modo geral, busca provocar emoções não polidas, nem socialmente aceitas ou encorajadas. Em outras palavras, a repulsa, o escárnio e a rejeição são bem-vindos.

Seria uma grande obra? Um clássico, uma referência de linguagem e estética? Em primeiro lugar, tal exigência soa injusta com qualquer trabalho no cinema. Em segundo lugar, torna-se quase impossível fazer tal avaliação sem considerar a extensa carreira do autor, e sobretudo, as circunstâncias atípicas de criação e finalização. Alguns filmes são fagocitados por circunstâncias extrafílmicas, cabendo aos olhares contemporâneos abraçar esta permeabilidade essencial: todo projeto será obra de seu(s) tempo(s). A Praga se tornará sempre “o filme perdido”, “o filme encontrado”, “aquele que levou quatorze anos para ser restaurado”.

Assim, torna-se um título importante, não apenas para a história dos filmes, mas para a história do cinema, aquela que considera questões econômicas, políticas, sociais. O resultado carrega a felicidade de ter sido enfim viabilizado, e a tristeza de ter sido perdido em primeiro lugar. O teor agridoce acompanha aquele provocado pela reabertura da Cinemateca, lugar feliz pelo reencontro de profissionais e amantes do audiovisual, e receoso quando se pensa na facilidade com que se interrompe as atividades de um setor fundamental. 

Cuidado, meu bem, há perigo na esquina, parecia dizer a festa de celebração da sexta-feira 13 na Cinemateca Brasileira. Nenhuma conquista pode ser tomada por definitiva: teremos sempre que lutar pelo direito à democracia, à cultura, à arte, às memórias nacional e audiovisual. Qualquer filme pode ser censurado, perdido, queimado, interditado, levado ao esquecimento, e qualquer instituição-chave pode ser trancada e calada do dia para a noite. Celebramos coletivamente, naquela noite, a alegria das liberdades fundamentais, sem nos esquecer dos capatazes que continuam a nos rondar. A satisfação foi ponderada pela prudência e pela lucidez. Seguimos em luta.

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