Uma Noite sem Saber Nada (2021)

A política madrugada adentro

título original (ano)
A Night of Knowing Nothing (2021)
país
França, Índia
gênero
Drama, Documentário
duração
99 minutos
direção
Payal Kapadia
elenco
Bhumisuta Das
visto em
11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba

A certa altura da narrativa, L., uma estudante de cinema, confessa a dificuldade de montar o projeto no qual trabalha. A garota não tem certeza de compreender a história, nem os objetivos da personagem. No entanto, ela persiste, estabelecendo uma afinidade intuitiva entre as imagens. Esta poderia ser uma metáfora para Uma Noite sem Saber Nada, projeto que se sucede num fluxo de estímulos e ambientações, ao invés de conceitos pré-estabelecidos.

O docudrama indiano (ou “híbrido”, nas palavras da autora Payal Kapadia) se desenvolve em ritmo lânguido, guiado pela voz sussurrada da narradora Bhumisuta Das. Esta última narra tanto o amor impossível com um homem de casta mais nobre quanto as agressões crescentes que os estudantes de cinema sofrem nas universidades de audiovisual de Nova Delhi. Ela lamenta a paixão frustrada, a derrocada da democracia e o sentimento de vazio permanente através das cartas que escreve, mas nunca envia.

Para o espectador, esta pode parecer uma experiência árdua e hermética. O rosto que emite a voz feminina aparece apenas numa cena final, em breve passagem. Antes disso, permanece uma incógnita ao espectador. O destinatário também está ausente. Estes amantes e militantes são desprovidos de corpo e de protagonismo real: L. descreve uma luta política da qual não faz parte, somente testemunha de um lugar distante e melancólico. Já o rosto dos verdadeiros agentes do protesto contra o governo são escondidos pela escuridão.

Vale frisar que este é um filme muito, muito escuro. É comum que os projetos em preto e branco aumentem o contraste da fotografia para ressaltar os pontos brancos em meio à paisagem e direcionar o olhar do espectador. Kapadia, em contrapartida, trabalha com uma estética sombria de baixo contraste: suas imagens variam do cinza-escuro ao preto profundo. Os universitários se convertem em vultos indistintos. Mesmo nas raras cenas coloridas, o efeito íris oculta parte do enquadramento e impede o espectador de enxergar além de um pequeno círculo iluminado.

Não é muito fácil se identificar com os personagens, seja pela passividade da narradora, seja pelo ativismo que se perde na ausência de luz.

Deste modo, o protagonismo recai sobre as vozes múltiplas e invisíveis. Não é muito fácil se identificar com os personagens, seja pela passividade da narradora, seja pelo ativismo se perde na ausência de luz. O conceito de fotografia se torna tão opressor que monopoliza as atenções e se sobrepõe ao caráter humanista da discussão.

Em paralelo, o filme apresenta dificuldade em costurar o quiproquó fictício das cartas encontradas por acaso, refletindo o amor proibido, e das manifestações reais contra a extrema-direita contemporânea. Inicialmente, o caso do namorado preso no quarto pelos pais, devido à vontade de se casar com a jovem de casta inferior, domina o percurso. Detalham-se os rabiscos de L. na beirada do caderno, as páginas rasgadas, a decisão de parar de escrever cartas. 

No entanto, conforme o roteiro avança, o viés documentário fagocita a frágil ficção e toma conta da segunda metade. Os trechos reais de estudantes debatendo a respeito da liberdade de expressão e da democracia na Índia são tão fortes que o romance não encontra brecha para se desenvolver. É uma pena que estes registros sejam tingidos de preto profundo, pois por trás dos vultos há falas potentes representando o despertar de uma juventude engajada. 

Uma Noite sem Saber Nada se articula neste encontro curioso encontro entre a condução letárgica e a urgência das disputas nas ruas e universidade. Talvez o intuito fosse atenuar os extremos, atribuindo poesia à agressão, e furor às metáforas. Em contrapartida, os registros se desencontram, como se pertencessem a obras diferentes. Por isso, a ficção é obrigada a se apequenar rumo à conclusão, quando somente o debate acerca do ensino importa de fato. A montagem tampouco sustenta as duas linhas paralelas até o final.

“Por favor, peço que tenham paciência com o filme. Ele tem um ritmo peculiar”. Apesar de compreensível, o pedido da autora durante a apresentação do projeto ao público brasileiro desperta preocupação. Toda obra acompanhada previamente de pedido de desculpas, ressalva ou manual de instruções parece ser incapaz de justificar as decisões por conta própria. Para uma opção tão radical de linguagem, faltava uma postura assertiva, não da jovem diretora, mas das imagens. Aquele que acredita piamente no que faz não clama por aceitação. Ou esta seria uma solicitação válida em tempos de déficit de atenção, de efemeridade das redes sociais?

De qualquer modo, o projeto indiano possui qualidades na decisão de triangular o amor romântico, o amor pelo cinema e a paixão pela política. Aqui, eles constituem um único gesto, como se o afeto por uma pessoa fosse indissociável do interesse pelas artes. Percebe-se a vontade de pesquisar referências, romper barreiras e convenções do cinema clássico, algo valioso para uma obra acerca de revoluções sociais. Infelizmente, o conceito se mostra mais forte do que a realização. Nada, no entanto, que apague a curiosidade pelas próximas iniciativas audiovisuais de Payal Kapadia. 

Uma Noite sem Saber Nada (2021)
5
Nota 5/10

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