Pluft: O Fantasminha constitui um animal raro no cinema brasileiro. Por um lado, ele conta com os aparatos mais rebuscados de produção e efeitos visuais que nossa cinematografia é capaz de proporcionar. A obra é realizada em 3D, incluindo filmagens subaquáticas, muitos drones e maquetes, além de cenários criados inteiramente em computação gráfica. Há “valor de produção” suficiente para encher os olhos do público com cenários e locações deslumbrantes.
Por outro lado, tamanha estrutura se põe a serviço de uma trama singela, no caso, a adaptação da peça homônima de Maria Clara Machado, escrita na década de 1950. Trata-se de uma fábula carinhosa a respeito da amizade entre um garoto fantasma e uma menina humana, aprendendo a conviver com as diferenças. No caminho, descobrem sua força interior, a confiança na proteção dos pais e o valor das amizades incondicionais. Há otimismo e candura em doses fartas ao longo da aventura adaptada incontáveis vezes nos palcos brasileiros.
Desta vez, a diretora Rosana Svartman aproveita a terceira dimensão para fazer com que o fantasma venha em direção ao público. Ela compara a flutuação destes seres etéreos com o estado de mergulhar numa piscina (onde, de fato, mergulhou os atores durante as filmagens. Em paralelo, cria pastéis de vento que brilham no escuro do casarão decadente, e longos voos pelas planícies litorâneas, quando o pequeno Pluft (Nicolas Cruz) carrega sua amiga Maribel (Lola Belli).
Os recursos impressionam. Há cuidado na construção de cenários, figurinos e luzes, ainda que pareçam um tanto deslocados do real rumo em prol de teor asséptico — vide as roupas impecavelmente limpas e passadas dos amigos atrapalhados, após passarem por uma epopeia à procura de Maribel. No entanto, a fantasia serve como desculpa para estas e outras licenças poéticas: o pirata que sequestra a criança sem qualquer tentativa de impedimento por parte das dezenas de adultos presentes; um tio guardando segredos valiosíssimos, mas que ninguém ousa acordar porque, afinal, o sujeito está cansado demais e prefere dormir.
Surge um orgulho de constatar nosso cinema, em fase tão politicamente fragilizada, lançando uma obra destas proporções. Turma da Mônica e D.P.A. têm resgatado um cinema infantil de qualidade e esmero técnico, superando a crença de algumas produções isoladas, segundo as quais os pequenos se contentariam com qualquer correria colorida, musical e repleta de mensagens ao término da sessão. Pluft e os outros casos citados preocupam-se em apresentar um bom cinema.
Se o polimento da produção merece aplausos, talvez o ritmo e a visão de mundo sejam mais questionáveis.
Se o polimento da produção merece aplausos, talvez o ritmo e a visão de mundo sejam mais questionáveis. Embora a obra transmita valores universais, a exemplo da união e da amizade, ela poderia se preocupar com um olhar contemporâneo. Pluft: O Fantasminha carrega uma ingenuidade exagerada, tanto pelos acontecimentos quanto pelas atuações, soando descolado do século XXI. O pirata faz caretas por ser verdadeiramente mau; a mãe cuida do filho com olhar sublinhado de amor, enquanto passa o dia presa à cozinha, preparando pastéis de vento. Já os bares servem somente de ringue de luta.
Esta disposição soa apartada do nosso mundo. Produções infantis emocionantes e complexas em termos psicológicos podem aproveitar malícias e ambiguidades. Elas conseguem superar o maniqueísmo evidente, enquanto retiram a mulher do “habitat comum” no espaço doméstico, ou deslocam os homens da obrigatoriedade de aventura, conquista e força física. Mesmo os fracotes desta história ainda comprovam alguma coragem, apartada de sua real capacidade de luta — ou seja, eles podem perder, mas prestam-se ao combate.
Ora, neste mundo, os personagens falam de maneira bem ar-ti-cu-la-da, abrem bem a boca para expressar espanto, riem muito quando estão felizes, e repetem as falas alheias para facilitar a compreensão do jovem espectador. “Ele está no baú”. “No baú?”. “Dentro do barco!”. “Dentro do barco?”. A compreensão do mundo, já simplificada, é sublinhada duas ou três vezes para fins pedagógicos. É claro que o bem vencerá o mal, e o vilão será punido pelo descumprimento das normas. O caráter funcional e moral do texto de partida segue intacto, assim como a visão clownesca do mundo adulto, e a percepção de que os problemas tendem a se resolver, mais cedo ou mais tarde, pois essa seria a ordem natural das coisas. Politicamente, este ponto de vista é discutível.
Em termos cinematográficos, a mise en scène falha em trabalhar dois aspectos fundamentais: o espaço e o tempo. Nunca conhecemos as partes que compõem a grande casa de Pluft, nem o vemos explorá-la. A cidade se situa perto do imóvel à beira-mar? Pluft e sua mãe costumam sair ocasionalmente? Já o sequestro de Maribel pelo perigoso Perna de Pau despreza o medo, a tensão, o senso de urgência: a menina fica no local, espera, entedia-se, descobre que pode sair correndo porta afora. Quando vê o inimigo chegar, lamenta pela própria sorte, ao invés de bolar um plano de fuga.
O sentido de inevitabilidade se descola dos tempos presentes. O pirata enxerga o baú onde estaria seu precioso tesouro, mas decide que já está escuro demais lá fora, e prefere voltar amanhã. A mãe de Pluft sabe dos perigos que ocorrem nos cômodos de sua casa, porém decide não se envolver. Há pouco esforço ou ambição por parte dos personagens, o que inclui a trinca de amigos patetas. Convenientemente, a história se esquece deles durante dezenas de minutos, apenas para retomá-los quando são convenientes.
Juliano Cazarré e Fabíula Nascimento são ótimos atores, dotados de versatilidade e de uma entrega generosa a esta forma de atuação caricatural. No caso da trinca de aventureiros, as prestações possuem níveis e dotes cômicos radicalmente desiguais. O tio Gerúndio, infelizmente, fica subaproveitado na trama, em chave oposta à taberna, construída em grandes proporções, e ocupando tempo considerável da narrativa, apesar da função narrativa irrelevante.
Por fim, talvez fosse importante trazer Pluft à sociedade contemporânea. Isso não implica em incorporar telefones celulares ou redes sociais, apenas uma compreensão mais veloz da infância, menos idealizada e edulcorada. Para discutir de fato o preconceito, a desconfiança da menina com o fantasma, e vice-versa, poderia durar mais do que um minuto, e tudo não precisaria se resolver magicamente rumo à conclusão. Crianças conseguem absorver mais complexidade do que se estimava setenta anos atrás, e o cinema deve acompanhar este processo.