Rios, riachos e lagos. Piscinas e açudes. Cachoeiras, lagoas, mares. Chuvas, tempestades. Represas, parques aquáticos. Galões d’água, copos d’água, chuveiros, banheiras. Inundações, secas, estiagens. Peixes, nadadores, ribeirinhos, pescadores. Toda e qualquer cena em Virar Mar representa a água ou ausência da mesma. O projeto se foca na onipresença ou na falta deste elemento em nossas vidas cotidianas, em nível local ou global.
A proposta ecológica possui um valor político evidente. Ao invés de apostarem no tradicional documentário conscientizador, com especialistas fornecendo dados alarmantes sobre o atual estado das coisas, os cineastas Danilo Carvalho e Philipp Hartmann preferem uma colagem abstrata de referências e constatações, para que o espectador perceba, por si mesmo, o valor da água na sobrevivência da espécie. Por isso, somem os narradores em off, as entrevistas e letreiros.
No lugar destes, existem apenas as cenas captadas no Brasil e na Alemanha, alternando-se placidamente. Num país, o lago e os pescadores. No outro, o pântano e a decisão controversa de alagar uma região. Volta-se ao Brasil, com turistas se divertido num parque aquático. Retorna-se à Europa, com alemães encenando uma peça de conscientização. E de volta ao Brasil, com uma brincadeira bíblica: “Com a poluição, Jesus não anda mais sobre as águas” (vide imagem em destaque acima(.
Alguns recursos estilísticos impressionam pela ousadia dos diretores, sobretudo no terço inicial. Uma ágil articulação entre paisagens e contextos une locais distintos pelo som das águas em forte vazão. Por cima da água despejada por uma embarcação em movimento, projeta-se a imagem de pessoas nadando em outro contexto. Água sobre água, ou a união de povos e situações através do recurso hídrico. O encontro com Caronte, na cena inicial, apresenta inúmeras possibilidades metafóricas ao resto da narrativa.
No entanto, estes acenos poéticos se interrompem por aí. Caronte não volta; a montagem privilegia uma alternância mais tradicional das cenas a seguir; as sobreposições e projeções se interrompem. Entram em cena elementos mais convencionais, lineares: os drones para revelar um solo árido, peças de teatro dos dois lados do Atlântico, nas quais moradores locais encenam a tristeza da seca. “Água, muita água!”, sonha a mulher delirante, numa espécie de faz-de-conta de grandes pretensões políticas, e magras ambições artísticas.
Virar Mar constata o problema hídrico e segue lembrando o espectador de sua existência, evitando fornecer elementos novos, ou visualmente impactantes, para sustentar esta tese.
O longa-metragem passa a apresentar um olhar de contemplação. Cenas de águas se alternam de maneira protocolar, sem provocar faíscas entre si, nem apontarem a um discurso coeso. Paira uma aparência de aleatoriedade na maneira como as sequências se sucedem, como se pudessem ter sido montadas em qualquer outra ordem, sem prejuízo considerável ao conjunto. Havia um roteiro preciso antes da gravação, ou o esqueleto narrativo teria nascido apenas na mesa de montagem?
Em consequência, o furor narrativo inicial se acalma, se domestica, e perde sua potência conforme o filme avança. Virar Mar constata o problema hídrico e segue lembrando o espectador de sua existência, evitando fornecer elementos novos, ou visualmente impactantes, para sustentar a tese. Alguém contestaria o evidente problema da escassez de água, e dos cuidados insuficientes dos governantes com os recursos hídricos mundiais? Reforça-se, portanto, uma percepção do senso comum, baseada no imaginário popular e coletivo a respeito do tema.
Enquanto reflexão, este olhar se priva de apontar dedos a possíveis responsáveis, ou a investigar as causas e soluções dos mesmos. A associação entre Brasil e Alemanha soa fortuita: por que estes países em particular, para além da origem dos criadores? Seriam representantes exemplares dos cuidados com a água, ou do descaso com a mesma? O que dizer das especificidades de cada continente, da gestão política e das necessidades particulares de cada população?
Na ausência de uma contextualização histórica ou social, restam propostas informativas de teor singelo. Nesta trama, as televisões se ligam apenas para informar o espectador acerca de uma inundação ou barragem, tornando-se meros instrumentos acessórios. Quando um sujeito atende o celular, próximo a uma piscina vazia, a conversa diz respeito à estiagem. A imagem de esqueletos humanos e animais permitiria um aprofundamento de ordem biológica que os criadores se recusam a efetuar.
Pontualmente, existem inúmeros fragmentos notáveis. A tempestade no estacionamento de um centro comercial resulta numa cena de forte impacto imagético. A utilização de trilha sonora operística, ou com órgãos, também aponta a uma leitura de ordem mais sensível, sentimental, do que meramente observacional. No entanto, os problemas se encontram na junção destes fragmentos de estilos variados, que se aglutinam sem necessariamente se completar. Na ausência de coesão estética, propõe-se a variedade temática: ninguém reclamará da falta de água neste longa-metragem.
A presença eventual de atores desfilando pelas paisagens, aparecendo e sumindo numa trucagem para virar as partituras de um pianista, abrem o caminho ao realismo fantástico, tampouco aproveitado. O filme brasileiro-alemão parece ter nascido de um interessante brainstorming, no qual inúmeras ideias — todas válidas e férteis — foram lançadas sobre a mesa, e então filmadas e encenadas. Infelizmente, nenhum destes aspectos se desenvolve, e uma vez reunidos, formam uma colcha de retalhos desconexa.
Ao espectador, resta uma experiência hermética, de comunicação limitada. O público afeito a obras experimentais encontrará manipulações de linguagem bastante tímidas. Para o espectador acostumado a documentários clássico-narrativos, talvez o discurso ecológico soe disperso demais. Sobrará a água, muita água, único elemento-protagonista capaz de reunir absolutamente todas as imagens, do primeiro ao último minuto. A água se torna princípio, meio e finalidade da obra.