O Exorcista do Papa (2023)

O demônio conveniente

título original (ano)
The Pope’s Exorcist (2023)
país
EUA, Reino Unido, Espanha
gênero
Terror
Duração
103 minutos
direção
Julius Avery
elenco
Russell Crowe, Daniel Zovatto, Alex Essoe, Franco Nero, Peter DeSouza-Feighoney, Laurel Marsden, Cornell John, Ryan O’Grady, Alessandro Gruttadauria, Jordi Collet, River Hawkins, Carrie Munro
visto em
Cinemas

“Vai ser um ótimo recomeço para todos nós!”. Uma mãe esperançosa declara a alegria de se encontrar diante de uma nova casa, com o filho pequeno e uma adolescente a tiracolo. O lugar é claramente uma mansão assombrada: escuro, caindo aos pedaços, gigantesco, com porões e sótãos assustadores, paredes falsas e símbolos estranhos dispersos aqui e acolá. Apenas nas ficções de terror as famílias comemoram o encontro certeiro com a morte.

Neste caso, o roteiro se esforça para tornar a aquisição do imóvel minimamente orgânica na narrativa. Trata-se de uma abadia herdada do falecido marido (sempre há um acidente traumático nestes casos, sendo, aqui, particularmente mal filmado). Na falta de recursos, precisam reformar o edifício para vendê-lo depois e se sustentarem. É difícil pensar como funcionaria o mercado imobiliário para construções religiosas, entretanto, ao menos os criadores notam a improbabilidade da premissa, e tentam remendá-la.

O Exorcista do Papa segue por este caminho até a conclusão. Todos os clichês do subgênero do exorcismo estão presentes, porém cercados pela tentativa discreta de contextualizar, ou atenuar sua artificialidade, ao invés de simplesmente solicitar a boa-fé do espectador. Encontramos os jump scares, os vultos nos corredores, os barulhos provindos de um cômodo vazio, os espaços escuríssimos por onde transitam os personagens. Para estes lugares-comuns, o roteiro imagina fiapos de justificativa: problemas de eletricidade no prédio em reformas, ruídos que poderiam provir da estrutura antiga, etc.

Em paralelo, o exorcista mencionado pelo título deixa de ser um homem puro, imbatível e exemplar. Pelo contrário, o Padre Gabriel Amorth (Russell Crowe) é engraçado, provocador, considerado um pária na Igreja, além apreciar suas doses de álcool. Ele prefere agir fora dos protocolos, andando de lambreta pela Itália e tolerando a atração do colaborador Esquibel (Daniel Zovatto) por belas fiéis da paróquia. O longa-metragem busca modernizar a figura do padre, sugerindo uma representação despojada da vocação religiosa.

O roteiro possui a audácia (ou o descaramento) de sugerir que a Inquisição Espanhola teria sido fruto do demônio. Ele teria assumido o controle dos padres, porque os santos representantes da Igreja jamais cometeriam tais atrocidades.

A escolha de Russell Crowe como protagonista soa contraproducente. O ator neozelandês não fala italiano, o que torna as conversas na língua local quase cômicas. Nos diálogos em inglês, improvisa um italiano-com-sotaque-em-inglês que não se assemelha, de fato, a nenhuma das duas línguas. Crowe se diverte com a malandragem do protagonista, mostrando-se confortável no humor. Talvez o diretor Julius Avery acredite que isso baste ao sucesso da empreitada. Aqui, a figura do padre se torna mais difícil de acreditar do que as presenças sobrenaturais.

O demônio, por sua vez, traz um pouco de variação quando comparado às ameaças típicas. Ele prefere garotinhos, ao invés de garotinhas (o subgênero sempre teve a predileção de monstros masculinos invadindo corpos femininos e castos, reforçando a sugestão metafórica de estupro). Além disso, não esconde a sexualidade exacerbada, percebida como traço inerente às forças do mal: a criatura dispara um “Vou foder você”, e afirma ter prazer e “ver você gozando”. Há menos uma punição do que um convite ao sexo na relação entre demônio e humanos.

A presença do diabo se torna particularmente questionável quando utilizada para a disputa de narrativas. O roteiro possui a audácia (ou o descaramento) de sugerir que a Inquisição Espanhola do século XV, quando a Igreja queimou e perseguiu cerca de 300 mil pessoas, teria sido fruto do demônio. Ele teria assumido o controle dos padres, porque os santos representantes da Igreja jamais cometeriam tais atrocidades em sã consciência. Em outra palavra, o crime histórico é desculpado em nome de uma criatura obsessora. Ainda que o texto lembre da existência de abusos sexuais no Vaticano contemporâneo (em teor condescendente de lamento), ele decide reler os fatos de modo a perdoar e atenuar a responsabilidade da Igreja no genocídio.

Esta estratégia se mostra bastante inesperada em O Exorcista do Papa, filme que sabe se ridicularizar em alguns momentos, até recair numa estratégia de fake news e teoria da conspiração quando lhe convém. Desculpam-se os inquisidores, desculpa-se Esquibel, que pratica sexo frequente com uma mulher de seios fartos (o corpo dela é mostrado; o dele, não), desculpa-se Amorth pela bebedeira e por ter abandonado outra bela mulher a quem recusou ajuda. Nota-se o caráter piedoso com instituições vingativas e homens incapazes de controlar seus impulsos, enquanto mulheres são sacrificadas (jogadas do alto de uma torre, em especial).

De resto, o longa-metragem se desafia a responder a algumas perguntas tão importante quanto ignoradas no subgênero dos filmes de exorcismo. Por que, afinal, demônios possuem corpos? Que ganho tiram desta experiência? Que uso fazem da possessão, e como escolhem as suas vítimas? Os projetos tradicionais se contentam em justificar os atos por uma maldade vaga, genérica: os demônios possuem indivíduos porque são maus. Sim, mas estas entidades poderiam manifestar seu impulso destrutivo de outra maneira, não?

Para os roteiristas Michael Petroni e Evan Spiliotopoulos, o demônio nutre um prazer (sexual, perverso, corpóreo) em ocupar os mais puros. “É tão bom destruir uma carne inocente!”, grita o demônio em sua defesa. O texto insinua que pessoas em crise, marcadas por passados sombrios, seriam mais propensas ao contato maligno: “Os traumas são uma brecha à possessão”, justifica Amorth, pouco após afirmar que não possui, de fato, qualquer conhecimento em psicologia. “Seus pecados hão de vos achar”, repete o slogan, numa mistura de punitivismo cristão com retorno do recalcado.

É claro que nenhuma destas argumentações se sustenta diante do mínimo exame lógico, nem se desenvolve de maneira coesa ao longo da narrativa. Afinal, a frase tão consequente soa o oposto de desculpar a Igreja Inquisidora ou de ocupar o corpo de um menino puro. No entanto, oferece o tom de gravidade e de autoimportância de que o filme carece para se levar minimamente a sério. Estes recursos promovem o equilíbrio com cenas grandiloquentes e cômicas, a exemplo da inscrição da palavra “ódio” na barriga do menino, ou do corpo aracnídeo da adolescente possuída. (Este demônio, faminto, descobre a possibilidade de “destruir carnes inocentes” de duas pessoas ao mesmo tempo).

Ao final, resta um projeto consciente de suas falhas e incongruências, porém sem a vontade de superá-las. Os criadores desenvolvem uma autotolerância sarcástica, reconhecendo os absurdos, mas praticando-os mesmo assim. O resultado navega entre o filme de possessão “sério”, que visa despertar medo no espectador, e a paródia do gênero, satisfeita em apontar o funcionamento padrão deste tipo de narrativa. Ainda há brecha para inúmeras sequências, caso a bilheteria o permita. Novamente, o final será tão engraçado quanto improvável. Caso os lucros o legitimem, será interpretado como intenção séria de se tornar uma franquia. Caso não justifique os gastos, terá sido apenas uma brincadeira, uma piada sem consequências.

O Exorcista do Papa (2023)
4
Nota 4/10

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