“Vai ser um ótimo recomeço para todos nós!”. Uma mãe esperançosa declara a alegria de se encontrar diante de uma nova casa, com o filho pequeno e uma adolescente a tiracolo. O lugar é claramente uma mansão assombrada: escuro, caindo aos pedaços, gigantesco, com porões e sótãos assustadores, paredes falsas e símbolos estranhos dispersos aqui e acolá. Apenas nas ficções de terror as famílias comemoram o encontro certeiro com a morte.
Neste caso, o roteiro se esforça para tornar a aquisição do imóvel minimamente orgânica na narrativa. Trata-se de uma abadia herdada do falecido marido (sempre há um acidente traumático nestes casos, sendo, aqui, particularmente mal filmado). Na falta de recursos, precisam reformar o edifício para vendê-lo depois e se sustentarem. É difícil pensar como funcionaria o mercado imobiliário para construções religiosas, entretanto, ao menos os criadores notam a improbabilidade da premissa, e tentam remendá-la.
O Exorcista do Papa segue por este caminho até a conclusão. Todos os clichês do subgênero do exorcismo estão presentes, porém cercados pela tentativa discreta de contextualizar, ou atenuar sua artificialidade, ao invés de simplesmente solicitar a boa-fé do espectador. Encontramos os jump scares, os vultos nos corredores, os barulhos provindos de um cômodo vazio, os espaços escuríssimos por onde transitam os personagens. Para estes lugares-comuns, o roteiro imagina fiapos de justificativa: problemas de eletricidade no prédio em reformas, ruídos que poderiam provir da estrutura antiga, etc.
Em paralelo, o exorcista mencionado pelo título deixa de ser um homem puro, imbatível e exemplar. Pelo contrário, o Padre Gabriel Amorth (Russell Crowe) é engraçado, provocador, considerado um pária na Igreja, além apreciar suas doses de álcool. Ele prefere agir fora dos protocolos, andando de lambreta pela Itália e tolerando a atração do colaborador Esquibel (Daniel Zovatto) por belas fiéis da paróquia. O longa-metragem busca modernizar a figura do padre, sugerindo uma representação despojada da vocação religiosa.
O roteiro possui a audácia (ou o descaramento) de sugerir que a Inquisição Espanhola teria sido fruto do demônio. Ele teria assumido o controle dos padres, porque os santos representantes da Igreja jamais cometeriam tais atrocidades.
A escolha de Russell Crowe como protagonista soa contraproducente. O ator neozelandês não fala italiano, o que torna as conversas na língua local quase cômicas. Nos diálogos em inglês, improvisa um italiano-com-sotaque-em-inglês que não se assemelha, de fato, a nenhuma das duas línguas. Crowe se diverte com a malandragem do protagonista, mostrando-se confortável no humor. Talvez o diretor Julius Avery acredite que isso baste ao sucesso da empreitada. Aqui, a figura do padre se torna mais difícil de acreditar do que as presenças sobrenaturais.
O demônio, por sua vez, traz um pouco de variação quando comparado às ameaças típicas. Ele prefere garotinhos, ao invés de garotinhas (o subgênero sempre teve a predileção de monstros masculinos invadindo corpos femininos e castos, reforçando a sugestão metafórica de estupro). Além disso, não esconde a sexualidade exacerbada, percebida como traço inerente às forças do mal: a criatura dispara um “Vou foder você”, e afirma ter prazer e “ver você gozando”. Há menos uma punição do que um convite ao sexo na relação entre demônio e humanos.
A presença do diabo se torna particularmente questionável quando utilizada para a disputa de narrativas. O roteiro possui a audácia (ou o descaramento) de sugerir que a Inquisição Espanhola do século XV, quando a Igreja queimou e perseguiu cerca de 300 mil pessoas, teria sido fruto do demônio. Ele teria assumido o controle dos padres, porque os santos representantes da Igreja jamais cometeriam tais atrocidades em sã consciência. Em outra palavra, o crime histórico é desculpado em nome de uma criatura obsessora. Ainda que o texto lembre da existência de abusos sexuais no Vaticano contemporâneo (em teor condescendente de lamento), ele decide reler os fatos de modo a perdoar e atenuar a responsabilidade da Igreja no genocídio.
Esta estratégia se mostra bastante inesperada em O Exorcista do Papa, filme que sabe se ridicularizar em alguns momentos, até recair numa estratégia de fake news e teoria da conspiração quando lhe convém. Desculpam-se os inquisidores, desculpa-se Esquibel, que pratica sexo frequente com uma mulher de seios fartos (o corpo dela é mostrado; o dele, não), desculpa-se Amorth pela bebedeira e por ter abandonado outra bela mulher a quem recusou ajuda. Nota-se o caráter piedoso com instituições vingativas e homens incapazes de controlar seus impulsos, enquanto mulheres são sacrificadas (jogadas do alto de uma torre, em especial).
De resto, o longa-metragem se desafia a responder a algumas perguntas tão importante quanto ignoradas no subgênero dos filmes de exorcismo. Por que, afinal, demônios possuem corpos? Que ganho tiram desta experiência? Que uso fazem da possessão, e como escolhem as suas vítimas? Os projetos tradicionais se contentam em justificar os atos por uma maldade vaga, genérica: os demônios possuem indivíduos porque são maus. Sim, mas estas entidades poderiam manifestar seu impulso destrutivo de outra maneira, não?
Para os roteiristas Michael Petroni e Evan Spiliotopoulos, o demônio nutre um prazer (sexual, perverso, corpóreo) em ocupar os mais puros. “É tão bom destruir uma carne inocente!”, grita o demônio em sua defesa. O texto insinua que pessoas em crise, marcadas por passados sombrios, seriam mais propensas ao contato maligno: “Os traumas são uma brecha à possessão”, justifica Amorth, pouco após afirmar que não possui, de fato, qualquer conhecimento em psicologia. “Seus pecados hão de vos achar”, repete o slogan, numa mistura de punitivismo cristão com retorno do recalcado.
É claro que nenhuma destas argumentações se sustenta diante do mínimo exame lógico, nem se desenvolve de maneira coesa ao longo da narrativa. Afinal, a frase tão consequente soa o oposto de desculpar a Igreja Inquisidora ou de ocupar o corpo de um menino puro. No entanto, oferece o tom de gravidade e de autoimportância de que o filme carece para se levar minimamente a sério. Estes recursos promovem o equilíbrio com cenas grandiloquentes e cômicas, a exemplo da inscrição da palavra “ódio” na barriga do menino, ou do corpo aracnídeo da adolescente possuída. (Este demônio, faminto, descobre a possibilidade de “destruir carnes inocentes” de duas pessoas ao mesmo tempo).
Ao final, resta um projeto consciente de suas falhas e incongruências, porém sem a vontade de superá-las. Os criadores desenvolvem uma autotolerância sarcástica, reconhecendo os absurdos, mas praticando-os mesmo assim. O resultado navega entre o filme de possessão “sério”, que visa despertar medo no espectador, e a paródia do gênero, satisfeita em apontar o funcionamento padrão deste tipo de narrativa. Ainda há brecha para inúmeras sequências, caso a bilheteria o permita. Novamente, o final será tão engraçado quanto improvável. Caso os lucros o legitimem, será interpretado como intenção séria de se tornar uma franquia. Caso não justifique os gastos, terá sido apenas uma brincadeira, uma piada sem consequências.