O quinto dia de mostra competitiva no 51º Festival de Gramado estava cercado de expectativas em relação ao “suspense melodramático” Uma Família Feliz. O projeto chegou ao tapete vermelho com nomes de peso: Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini no elenco, o escritor Raphael Montes no roteiro, e, na direção, José Eduardo Belmonte, um dos cineastas mais hábeis na transição entre o cinema autoral e um cinema popular de qualidade.
No palco, a equipe pediu encarecidamente para o público manter o segredo sobre as reviravoltas e descobertas, pois a história estaria repleta de surpresas. Lembraram que havia uma cena durante os créditos, então, que ficássemos todos sentados, pois esta inserção traria algumas novidades. Estas linguagens e procedimentos são raríssimos no cinema brasileiro: a cena pós-crédito, o suspense psicológico, a escalação de duas celebridades para papéis de possíveis assassinos.
A trama se diverte, perversamente, em destruir a família perfeita do comercial de margarina. Uma mãe linda, um pai lindo, duas crianças lindas. Um bebê a caminho. Eles tomam café da manhã farto, com sucos e quitutes, numa casa gigantesca. No entanto, as crianças começam a aparecer com machucados pelo corpo. O bebê recém-nascido, também. Todos os indícios apontam para Eva (Massafera), uma mulher que passa os dias criando bonecas realistas para o acalento de famílias em luto, que perderam seus filhos. Ela ignora o próprio bebê chorando para fazer os bonecos e assar suas cabeças num forno (parte comum do processo de criação, aparentemente).
O roteiro sugere todas as interpretações possíveis e imagináveis ao mistério: Eva estaria realmente maltratando as filhas. Ela estaria agredindo as meninas, mas de maneira inconsciente, num surto dissociativo. O pai seria o verdadeiro agressor. Talvez ele seja um pedófilo. É possível que uma irmã esteja agredindo a outra. Talvez os ferimentos ocorram na escola. A mãe biológica das meninas, dada como morta, pode estar de volta, provocando os roxos no corpo. Talvez as crianças não existam, nem o bebê – alô, O Sexto Sentido, alô, Os Outros. Eva pode estar delirando os fatos a partir de um hospital psiquiátrico. Faça as suas apostas.
A construção do suspense funciona bem. Belmonte trabalha com planos estáticos, elegantemente compostos, de modo a sublinhar a rigidez dos costumes — trata-se de uma família conservadora, tradicional, convertida posteriormente ao bolsonarismo. Os acontecimentos mais grotescos ou aventurescos preservam a aparência de normalidade através destas casas luxuosas, em imagens de tom bege e cinzento. O espectador se torna o único a presenciar diversos fatos, enquanto o mundo ao redor de Eva efetua julgamentos morais sem conhecer os elementos em jogo. Eventualmente, o público descobre que tampouco sabia muito do que ocorria naquele lar.
No clímax e na conclusão, a verdade vem à tona, ressignificando sequências vistas anteriormente. A montagem de impacto articula o choque dos sons altos, fragmentos de cenas curtíssimas e os letreiros despejados agressivamente na tela (até a fonte dos letreiros visa causar impacto). Os criadores buscam trabalhar na chave do whodunnit — quem causou as agressões e provocou a morte da mãe das meninas? Neste aspecto, obtém sucesso. A tensão se sustenta do começo ao fim.
É louvável que uma produção deste gênero apareça na filmografia brasileira. Se produções de aventura, ficções científicas e de super-herói são caras demais para serem realizadas aqui, podemos trazer novas formas de cinema popular para além do humor rasgado, muitas vezes descuidado em estética e discurso. Suspenses representam uma alternativa viável comercialmente e em termos de produção. A visibilidade de atores como Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini, ambos competentes em seus papéis, permite abrir nossos olhos a novas possibilidades: há mais formas e gêneros à disposição entre os dramas autorais, voltados aos festivais de cinema, e o humor de gritos, piadas e deboche.
Entretanto, o público em Gramado se ateve em especial às incontáveis incongruências e absurdos do roteiro. Como a família de classe média-alta, vivendo num casarão, não teria condição de contratar uma babá ou empregada? Que pessoa, em plena descoberta de um segredo bombástico, adormece deitado no chão do closet? Como a revelação dos maus-tratos levaria a uma catástrofe no condomínio próxima à chegada iminente de monstros e extraterrestes (em cena batizada pelos corredores do Palácio dos Festivais de “arrastão do parquinho”)? Num jantar, colegas começaram a contar as cenas e acontecimentos inverossímeis. A lista superou os vinte itens.
A questão do gênero justifica algumas destas liberdades em relação ao real. Determinados elementos podem ser desculpados pela lógica da fantasia, pela primazia da ambientação sobre o naturalismo. Cabe, no entanto, decidir até onde a improbabilidade se tolera ou ignora, e a partir de qual momento se torna inaceitável, rompendo a imersão do espectador. O resultado desagradou à maioria dos colegas. No entanto, acredito que o saldo ainda seja positivo. A bem-sucedida brincadeira com os códigos do thriller se sobrepõe à avalanche de insanidades que costumamos perdoar com facilidade em tantas produções norte-americanas da Netflix e Amazon, por exemplo.
Ainda bem que nossos criadores estão se arriscando pelo terreno quase-inexistente dos filmes do meio, procurando unir público e crítica, efetuando a ponte fundamental entre ambos. Diz-se que nenhuma indústria se sustenta sem estas obras intermediárias. Na ausência de Jorge Furtado e Laís Bodanzky contribuindo ao segmento, é ótimo termos um diretor inteligente como Belmonte para esta tarefa. O roteiro poderia ser melhor? Sem dúvida. Mas cabe enxergar Uma Família Feliz enquanto início de um segmento fértil, prestes a se desenvolver, ao invés de cortar a digna iniciativa pela raiz.
Se as sessões de longas-metragens despertaram reações mistas — o que também valeu para o documentário Roberto Farias: Memórias de um Cineasta, de Marise Farias —, os curtas-metragens apontaram para uma melhoria crescente no nível dos filmes, nesta reta final da programação. Os organizadores realmente deixaram as melhores obras para os dias finais. Casa de Bonecas, de George Pedrosa, e Pássaro Memória, de Leonardo Martinelli, demonstram uma liberdade de formas e discursos que os tímidos longas-metragens não conseguiram transparecer.
Ambos chegam ao sul do Brasil após passagens bem-sucedidas em festivais internacionais — Roterdã, para a obra maranhense, e Locarno, para o curta carioca. Pássaro Memória acompanha a trajetória de Lua (Ayla Gabriela) pelas ruas do Rio de Janeiro em busca de seu pássaro perdido, de nome Memória. Conforme ocupa os espaços do centro, se confronta ao preconceito e descaso. Sua revolta internalizada se traduz em números musicais, cuidadosamente compostos em termos de enquadramento e lirismo.
O resultado se assemelha bastante a Fantasma Neon, projeto anterior do cineasta, em termos de estrutura narrativa. Estão de volta o musical, a marginalidade de pessoas negras e invisibilizadas pelo centro da cidade, o recurso ao realismo mágico. Talvez este fator tenha impedido o curta-metragem de receber uma apreciação mais calorosa. A sensação de déjà vu freou parte da imprensa e dos jurados, certos de que obra tão polida ainda receberia outros prêmios, em outros festivais. Após a vitória de Fantasma Neon em Locarno, no ano passado, estimou-se que este curta já chegava aos nossos olhos com atenção e premiações suficientes. Engraçada a maneira como se pensa a qualidade e seu devido reconhecimento.
Já Casa de Bonecas utiliza o brinquedo do título enquanto proposta metafórica de subversão. Se, em Uma Família Feliz, as bonecas constituíam elemento óbvio de perversão, numa metáfora explícita até demais do possível caráter monstruoso da protagonista, Pedrosa revela como o mesmo elemento, empregado de forma mais ampla, pode resultar em leituras profundas. No caso, as bonecas são três personagens, de orientação sexual e identidade de gênero fluidas, convivendo numa família formada por laços de afeto — esta, sim, a verdadeira família feliz, destituída da ironia evidente (mais uma escolha explícita demais) do longa-metragem de Belmonte.
A estrutura segue uma estética tão orgânica e provocadora quanto as personagens, numa mostra essencial de adequação da forma ao conteúdo. Para personagens libertárias, cujos corpos afrontam o sistema por sua simples existência, era preciso adotar uma linguagem igualmente libertária. O cineasta não demonstra medo da escatologia, do grosseiro, do profano — vide as composições das protagonistas enquanto santas, cercadas por elementos de conotação sexual.
Mesmo assim, não há sexo, nudez, violência, nem qualquer ativismo panfletário e acusador. Não existe nenhuma provocação gratuita via temática, roteiro. O motivo que levou tantas pessoas a se levantarem e deixarem a sessão, ou a manifestarem o descontentamento diante da experiência, residia apenas no confronto à diferença. Nada do núcleo patriarcal padronizado de Uma Família Feliz, nem mesmo da transexualidade polida e lírica de Pássaro Memória. Aqui, há representações de insetos esmagados na bunda, deixando suas gosmas à vista, e alusões ao fisting. E sim, trata-se de uma obra de afetos entre amigas.
“É um filme bom, mas não para Gramado”, apontou uma voz importante da imprensa. “Não sei se entendi bem o que estava acontecendo ali. É tudo muito disperso, falta um remendo”, criticou outra. Essa impressão de uma narrativa diferente, provocadora, incomum numa cidade conservadora como Gramado, reforça sua importância no festival. A crítica precisa se confrontar a novas propostas estéticas e narrativas, sobretudo aquelas que nos desafiam na hora de elaborar as avaliações.
Pontos para a excelente curadoria de curtas-metragens, demonstrando a coragem que gostaríamos de ver estendida aos longas. Este foi o dia de nos confrontar ao desconhecido, ao diferente, às formas transgressoras de contar histórias. Boas ou ruins, forçaram a plateia do Palácio dos Festivais a reavaliar nossa percepção de qualidade. Festivais também servem para isso.