“Era uma vez um viado!”. A frase entoada com desdém por Catitu (Nelson Xavier) decreta o fim da Rainha Diaba (Milton Gonçalves), líder das bocas de fumo na periferia carioca. Nesta altura da trama, a (anti-)heroína tem seu domínio questionado, e vê os comparsas trocarem de time. No entanto, a fala do principal opositor parece iniciar uma fábula, apresentando a personagem ao público. Trata-se de uma evocação simultânea de fim e de começo, propícia à abertura da Quelly — Mostra Internacional de Cinema de Gênero e Sexualidade, em sua sexta edição.
É sintomático que o evento maranhense, composto sobretudo por curtas-metragens finalizados após 2020, se inicie com um longa-metragem de 1974. Trata-se de um retorno às raízes, como se os curadores George Pedrosa e Daniel Nolasco insistissem que as obras posteriores fossem analisadas a partir uma perspectiva histórica. Os experimentos de Renata Carvalho, Breno Baptista, Laure Giappiconi e Theo Montoya, entre outros cineastas cujos filmes integram a seleção, não surgiram de lugar nenhum: houve pioneiros para abrir estas portas.
Além disso, a cópia exibida no Teatro da Cidade de São Luiz, antigo Cine Roxy, costura por si própria os laços entre presente e passado. A versão digitalizada e recuperada, a partir de um material excepcionalmente bem preservado, oferece um deleite de cores e sons. Desde sua exibição no Festival de Berlim, onde venceu um prêmio de preservação, A Rainha Diaba tem sido redescoberto pelas gerações contemporâneas, levando o cineasta Antônio Carlos da Fontoura a mencioná-la como “meu mais novo filme de 50 anos atrás”, em evento na Cinemateca Brasileira.
A Mostra Quelly, que revestiu o cinema são-luisense das cores rosa e lilás, acolheu o universo multicolorido do clássico. A narrativa se inicia com letreiros feitos a mão, sobre cartolina, na qual foram colados glitter e fotos, de maneira artesanal. Para cada cartela, uma cor diferente. A imagem inicial acompanha uma personagem adentrando o prostíbulo onde se situa parte considerável da ação. O local possui quadros de textura carregada, fotos, cortinas compostas por tiras verdes, amarelas, vermelhas.
O quartinho da Rainha Diaba ostenta paredes verdes, janelas rosas, cadeiras amarelas, objetos vermelhos. No pensionato onde vive Isa (Odete Lara), as paredes são cor-de-rosa, com janelas amarelas, vermelhas e azuis. Nota-se o luxo kitsch e decadente nas roupas exageradas, evocando um conforto sonhado (ou a memória do conforto perdido) que serve a contextualizar a marginalidade por vias sociais e econômicas.
Através dos objetos, cenários e roupas, compreende-se quem são estes personagens que sonham alto a partir de realidades desfavoráveis. A própria Rainha, vejam só, ganha dinheiro e sustenta um império a partir de um quartinho modesto. Evoca-se com insistência um enriquecimento distante, utópico. As classes altas, os políticos, os grandes empresários estão devidamente apartados deste universo de sonhos, onde se parece viver uma ficcionalização de si próprio. Por isso, os casacos, a maquiagem pesada e os vestidos brilhosos correspondem a uma autoprojeção eufórica e melancólica (pois nunca concretizada).
É improvável que o cineasta tivesse a consciência de realizar, na época, um “filme queer”, porém esta seria a beleza dos estudos culturais e de gênero, aplicados ao cinema: a possibilidade de reavaliar obras a partir do olhar de uma geração distinta. O cinema queer estuda desde os primeiros anos da história do cinema, quando personagens masculinos efeminados e solteiros permitiam imaginar uma homossexualidade enrustida, ou a figura de mulheres que recusavam pretendentes masculinos (enquanto olhavam com carinho para as “amigas”) indicavam o lesbianismo latente.
Que A Rainha Diaba tenha se considerado queer ou não, em sua época, seria irrelevante nos nossos dias — afinal, a maioria das terminologias são atribuídas por terceiros, ao invés dos participantes do suposto movimento. As noções de Cinema Novo, Nouvelle Vague e afins foram atribuídas por críticos e intelectuais. A percepção socio-histórica provém de fora, a partir do distanciamento. Importa, de fato, a capacidade de reler a ascensão e queda da líder das bocas de fumo da década de 1970 por sua transgressão estética e de discurso.
A Rainha Diaba foi destronada por cobiça, mas também por homofobia. O principal opositor à protagonista representa, igualmente, o homem com maior aversão a gays. “É uma folga uma boneca daquela ser o manda-chuva. Como pode malandro bom trabalhar para aquela bicha?”, dispara Catitu. A primeira cena de Diaba a mostra deitada na cama, com um homem pedindo para cortar suas unhas do pé, enquanto um grupo de capangas aguarda dentro do quarto pela conclusão do ato. Este é o pequeno poder da figura ambiciosa.
Antes mesmo de descobrirmos o rosto da Diaba, vemos o quarto, suas pernas, o homem ao lado, e uma navalha na mão. Fontoura constrói a personagem a partir do imaginário de terceiros. Presente em menos da metade das cenas, ela constitui o tema principal das conversas dos demais. Os outros bandidos conspiram para atacá-la, sugerem agradá-la, discutem sua vida amorosa. O roteiro se inicia com a frase “Saiam todas daqui. As visitas da Diaba estão chegando”, quando Madame Violeta (Iara Côrtes) evacua seu estabelecimento. Diaba surge diante dos nossos olhos enquanto lenda, nunca desconstruída pela narrativa.
Milton Gonçalves reforça este imaginário quase delirante através de uma composição excepcional, repleta de variações. Fala grosso quando deseja intimidar, antes de apresentar um palavreado doce, exageradamente terno, na hora de solicitar favores. Sorri com a mesma frequência que corta rostos alheios com uma navalha. Percebendo o fim iminente de seu reinado, convoca amigas para uma festa de fachada, onde se utiliza de uma retórica passivo-agressiva para formar um novo exército disposto a apoiá-la. A guerra ocorre nos bastidores.
No Teatro da Cidade de São Luiz, os espectadores, em sua maioria jovens e LGBTQIA+, assistiam à imagem de um bar composto exclusivamente por figuras queer, em sua maioria, efeminadas e marginais. Os espectadores gays, lésbicas, bissexuais, travestis e não-binários presenciavam uma caracterização alegórica de si próprios, oriunda de cinquenta anos atrás. A disposição em colocar um público subrepresentado nas artes para observar a si mesmo, para se identificar, rir junto e temer junto dos personagens fictícios, constitui um valor fundamental do filme e da Mostra Quelly.
O evento maranhense traz ao palco de um grande cinema tradicional os curadores gays e figuras não-binárias, discutindo cinema profundamente marginal e fora do circuito. George Pedrosa relembrou aos presentes que ali costumava existir um cinema de pegação, de encontro entre gays. Agora a juventude queer volta a ocupar esta sala escura, o saguão, as ruas em frente, portando as roupas que lhe convêm, dominando o discurso, controlando a cena.
Trata-se de filmes LGBTQIA+ para pessoas LGBTQIA+ — e para todos aqueles que, não pertencendo aos grupos citados pela sigla, estejam abertos ao contato com a diferença. De qualquer maneira, este não seria um cinema feito sobre gays, para educar espectadores heterossexuais a respeito da tolerância, como se presencia com frequência no cinema mainstream. Tchau, O Segredo de Brokeback Mountain. Adeus, Filadélfia. Agora, gays, lésbicas, travestis falam deles, delas e delus, para eles, elas e elus.
Em paralelo, convém mencionar que o evento foi possibilitado por vias institucionais, com apoio do Governo do Estado do Maranhão — Secretaria de Estado da Cultura. A oficialização de um evento dedicado a estas pessoas e estes filmes, num cinema de relevância municipal, com direito a câmeras de televisão e repórteres presentes, oficializa a conquista de um espaço social efetuada mediante muito esforço e organização. As rainhas diabas saem do quartinho dos fundos para ocuparem o palco principal.