Entre Vênus e Marte | A ficção científica “tecnopobre” de Cris Ventura

Entre os longas e curtas-metragens do 13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba, um OVNI levou a plateia às gargalhadas, e se firmou como uma das obras mais criativas desta edição: Entre Vênus e Marte, dirigido por Cris Ventura. A cineasta de Cambaúba (2023) e Amador (2020) traz a jornada intergaláctica de Ed Marte (interpretado por si mesmo), um viajante espacial que luta contra os binarismos e vem ao Brasil no intuito de salvar a princesa Nickary Aycker.

Neste percurso, ele anda pelas ruas, participa de performances, entrevista passantes em Belo Horizonte e se comunica com criaturas mágicas. O filme efetua uma paródia dos clássicos de ficção científica, sobretudo Star Wars — com a diferença que Chewbacca se torna Suvaca, e que a cápsula espacial corresponde a um objeto envolvido em papel alumínio.

Em entrevista ao Meio Amargo, a cineasta explica suas referências, desde Trapalhões até Xuxa, e confessa o desejo de ver a produção exibida na Sessão da Tarde.

Como veio a ideia de transformar Ed Marte na protagonista do seu filme?
Eu conheço Ed há mais de vinte anos. Nossa amizade é bem antiga, desde o curso de teatro no Arena da Cultura. Inclusive, parte do filme se passa ali, na Praça da Estação, que a gente frequentava muito. Foi ele que me encorajou a fazer um curso de documentários. Depois disso, a gente criou uma associação, e meu primeiro curta-metragem já era com o Ed. Quando veio a pandemia, eu tinha feito o Amador (2020), que homenageava um amigo, meu falecido pouco tempo anteriormente. Este amigo já tinha um vínculo muito forte com as ruas. Mas era um filme com final muito triste e, conversando com o Ed, pensamos em fazer um filme pra cima, alegre. A vibe de Ed é essa: desde que eu o conheço, nunca o vi de mau-humor, de cara fechada, reclamando. Ele tem a mesma vibe que se vê no filme. Aí escrevi o projeto no BH nas Telas, e mandei. 

Temos a referência da chanchada, algo meio Trapalhões, meio Xuxa. Conversamos com a equipe de arte sobre esta coisa bem tecnopobre.

O filme está repleto de referências cômicas e de ficção científica.
Temos a referência da chanchada, algo meio Trapalhões, meio Xuxa, uma loucura. Inicialmente, a proposta era fazer um média-metragem, porque este era o formato exigido pelo edital. Mas decidi tentar fazer um longa. O dinheiro era muito curto para isso, então pensei: foda-se. Vamos ver o que dá pra fazer, e vamos nos divertir. Ed foi chamando as pessoas da Academia Transliterária, que aparecem na performance final. Ele chamou Marta Neves, que faz a Suvaca, e outras figuras que nos ajudaram a construir esta paródia. 
Primeiro, comecei com a paródia de Star Wars (1977), e depois, Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (1978). Conversamos com a equipe de arte sobre esta coisa bem tecnopobre, trazendo referências de artistas com essa estética. Pesquisamos locações capazes de transmitir esta aparência. Surgiram pessoas que ofereceram suas casas de fato, e um personagem nos indicou a locação da cena inicial. As coisas foram fluindo. 

Entre Vênus e Marte parece dever mais aos imprevistos do que a um roteiro predeterminado.
Eu tinha um argumento inicial: Ed veio de uma cápsula, que funcionava como metáfora para o isolamento da pandemia. Ed é uma pessoa que está em todos os eventos de BH. Eu pensava muito, durante a pandemia, como ele estaria, preso num apartamento, já que a vida dele é dar rolês pela cidade. 
Com a ideia da cápsula, a gente decidiu que tinham se passado séculos, porque a gente exagera em tudo. Pra Ed, deve ter parecido que se passaram séculos mesmo. A cápsula era o bagageiro do meu carro, por exemplo. Como a gente não tinha dinheiro para a arte, resolvemos desta maneira. Testamos, vimos que o Ed conseguia entrar, então só colocamos papel alumínio ali.
O filme foi construído assim. A gaymada não estava no roteiro, mas o Ed achou importante, por ser a centésima edição. Pensei: “Bom, não podemos apenas registrar isso, então como fazemos?”. Aí, no roteiro, veio a ideia do Governo do Caos, e de um atentado terrorista. Há uma tentativa de criar uma narrativa ali. Ao mesmo tempo, a premissa me servia principalmente para a falar sobre Ed, sem ser um documentário clássico.

Esse baixo orçamento é assumido, nunca disfarçado. É uma escolha fundamental para o filme.
De fato. A direção de arte, por exemplo, foi fruto de muitas conversas. Suvaca era o nosso Chewbacca, então era preciso trazer algo com pêlos, além de uma boquinha. Então colocamos vários paletós, um sobre o outro, para dar a aparência pesada. Nossa figurinista, que também fez o Trekinho, teve ideias excelentes. A Fredda deveria ser nosso mestre Yoda, e também misturamos com o imaginário de Jesus. Quisemos inicialmente fazer ela andar sobre as águas, mas o efeito não deu muito certo, então optamos por algo mais toscão, com ela flutuando. 
O figurino não tinha nada novo ou comprado. A gente não tinha dinheiro para isso, e o Ed tem trocentas roupas em casa. Os sapatos e roupas dele viraram figurino e serviram muito para a figurinista, que também estava sempre atrás de brechós. Além disso, comprar roupas novas não teria nada a ver com o Ed.

A gente não queria lacrar. Ed é uma pessoa não-binária, e faz parte da comunidade LGBTQIA+, era impossível não trazer isso ao filme. Estas subjetividades vieram naturalmente ao projeto.

Gosto que o filme tenha sexualidades plurais, mas não existem rótulos entre gays, trans, travestis, não-binários…
A gente não queria lacrar. Achamos interessante incluir apenas uma frase, quando o Ed lembra que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais. Mas mesmo nesta cena, temos pessoas dissidentes e trans, sem nos pautar apenas nisso. Um filme de ação e aventura estrelado por essas pessoas não precisa transformá-las em discurso: só o fato de elas ocuparem estes papéis já tem significado. Assim, conseguimos levantar outras questões, saca? 
Eu tinha certo receio, por ser uma mulher cis, em relação ao lugar de fala. Será que eu poderia fazer este filme? Até por isso, não queria problematizar os temas de gêneros e sexualidade, especificamente. Mas como Ed é uma pessoa não-binária, e faz parte da comunidade LGBTQIA+, era impossível não trazer isso ao filme. Estas subjetividades vieram naturalmente ao projeto. 

As cenas musicais são muito marcantes. Adoro a citação a “Solo Lunar”. 
No final do filme, citamos um poema argentino que o Ed adora. Nós dissolvemos estas falas e optamos por algo parecido com os quadros do Faustão, algo bem Domingão. O Ed vira um Faustão, um Gugu. Ele é uma figura que canta e dança, com backing vocals. Acaba o som, mas a galera continua cantando. Os programas de auditório também têm essas mulheres dançando no fundo, e eu quis trazer algo parecido. Minha viagem passava por isso: o imaginário das vedetes, com figurinos malucos mesmo, além da música bem louca da Lua Zanella, que é o Solo Lunar: “Quero foder chapada ao som de Lana Del Rey”. Quando escutei isso, adorei. 
E percebi como as coisas foram se conectando. O nome dela é Lua mesmo. O Ed Marte já tem esse nome por causa de uma brincadeira. Tinham referências ao planeta, às naves. De certa forma, o imaginário da ficção científica já estava lá. A ideia era pegar o real e exagerar à enésima potência. 

Você tem perspectivas de lançar este filme comercialmente? Pode ser desafiador, embora fosse interessante descobrir a resposta a essa estética no circuito exibidor clássico.
Meus filmes nunca entraram nas salas de cinema. Nenhum deles. Amador passou em festivais, por exemplo, mas foi isso, e agora está de graça na Embaúba Play. Vou disponibilizar Cambaúba online na Internet em breve. Sabe, eu sou professora, não posso ter empresa. Gosto de fazer filmes, mas a parte de distribuir não é muito evidente para mim. Se algum distribuidor aparecer, interessado em lançar o filme, pode ser que aconteça, mas se não rolar, eu jogo na Internet e vai ser isso mesmo. 

Meus filmes nunca entraram nas salas de cinema. Nenhum deles. Se não rolar [o lançamento comercial], eu jogo na Internet e vai ser isso mesmo. 

Faz sentido: para um filme marginal, encontrar vias marginais de exibição.
Eu entendo a dificuldade de inserir esse filme no circuito: ele não é feito para exibir em cinema de shopping. Seria meu sonho passar numa Sessão da Tarde. Tem apenas a cena em que Ed fuma um baseado na nave, mas isso não é muito explícito, embora seja uma das bandeiras dele. É algo sutil. Para mim, seria chique ver Entre Vênus e Marte na Sessão da Tarde. Não é por ser de temática queer que ele não pode se comunicar com o espectador em geral. Duvido que o público mais amplo fique horrorizado, ou associe pessoas trans à sexualidade. Eu até pensei: será que estou dessexualizando estas pessoas ao não abordar estes temas especificamente? Mas acredito que não seja uma obrigação. Dá para passar este filme numa Sessão da Tarde, sem problemas.

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