Uma ilha de pescadores, composta unicamente por homens. Mais do que isso, homens brutos e ignorantes. Até chegar uma inesperada presença feminina. Ela incomoda, por se tratar de uma mulher trans, mas também desperta curiosidade, desejo, além de um senso de posse — machos têm direito de controlar as mulheres, certo? A Filha do Pescador pretende confrontar o pensamento das cidades àquele das zonas contemporâneas ainda afastadas da modernidade. Contrapõe, igualmente, a masculinidade à feminilidade, e o conservadorismo às configurações múltiplas de gênero e sexualidade.
Deste modo, elege como protagonistas um pai violento (Samuel, interpretado por Roamir Pineda) e sua filha, rejeitada há muitos anos devido à transexualidade (Priscila, interpretada por Nathalia Rincón). Reúnem-se quando ela é perseguida pela polícia, e não encontra outro lugar para ficar. Todos os personagens são cercados, portanto, de uma aura de perigo: os homens se ameaçam com espingardas e arpões, enquanto a recém-chegada teria matado alguém antes de se refugiar na pequena comunidade.
Para o diretor Edgar Alberto de Luque Jácome, abordar a transexualidade significa filmar o corpo, exteriorizando as dores de maneira explícita e visível ao espectador. Essa é uma estratégia comum na maior parte de filmes LGBTQIA+ voltados ao público cisgênero e heterossexual, a quem se pede mais carinho e tolerância. Acredita-se que a psicologia de um indivíduo trans seja difícil de gerar identificação, portanto a imagem privilegia os seios de Priscila, o cabelo cortado à força pelo pai, a maquiagem retirada do rosto sob ameaça. Ela precisa de uma gilete para se barbear, e procura pelas roupas da mãe falecida. O corpo, para este cinema prático e imediatista, soa como algo mais palpável.
A iniciativa resulta antiquada, uma espécie de cinema LGBTQIA+ conformista e dócil, capaz de observar agressões como uma boa oportunidade de superação pessoal.
A questão trans passa principalmente pelo enfoque dado aos traços femininos num corpo que se esperava masculino — pelo menos, por parte dos demais personagens. Aí encontra-se um primeiro problema deste drama: o ponto de vista prefere se identificar com os homens cis-hétero que abrigam a jovem contra a sua vontade, do que se com a própria mulher trans. Demoramos a entender o que ela sente, o motivo real de sua fuga junto ao pai, ou como reage ao estupro cometido por um dos moradores da região. A câmera a observa à distância, na forma de um mistério que admira, mas não pretende decifrar de fato.
Priscila tinha amores? Amigos? Uma vida estável, apesar da prostituição forçada e de outros pequenos empregos? Como era aceita em sua identidade de gênero na cidade anterior? Que planos fazia para o futuro? Nunca saberemos. O projeto a reduz a um corpo parcialmente mudo, transparecendo uma indignação represada graças à sua impotência. Posto que precisa do pai neste momento, ela tolera os abusos cometidos por eles e pelos outros. É mais fácil compreender a atitude dela, neste contexto, do que aquela dos criadores, que nunca buscam uma maneira de representar, nem aludir, à vida lá fora.
Por isso, a mulher trans se torna essencialmente uma vítima. Ela foge de uma agressão para encontrar outras junto aos pescadores. Fazia sexo em troca de dinheiro, e passa a fazê-lo em troca do silêncio sobre sua situação real. Jácome estima que homenagear esta figura equivale a explicitar todas as marcas em seu corpo (vide os planos de detalhe dos cortes nos braços, os close-ups no rosto sem maquiagem). Seguindo um pensamento paternalista e cristão, somos convidados a nos aproximar dela porque sofre — em outras palavras, uma relação de piedade, ao invés de identificação.
No entanto, graças ao otimismo em relação aos reencontros, A Filha do Pescador permite que pai e filha, aos poucos, se aproximem novamente. Trata-se da promessa básica, e um tanto previsível, desta forma de drama: duas pessoas que se odeiam são obrigadas a conviverem, até se conhecerem melhor e formarem laços de afeto. Buddy movies, road movies e outras formas de cinema exploram variações mínimas deste conceito. Logo, é preciso que o pai machista se torne um pouco menos autoritário, e que a filha se torne menos feminina, para que ambos se entendam. Ele larga a espingarda, ela abre mão de cabelo e maquiagem.
O problema desta sugestão que ambos precisem fazer concessões para se entender reside na ideia de que transexuais e transfóbicos possuem o mesmo direito de ser respeitados, e de que ambos precisariam “atenuar” seus traços para o entendimento num utópico “meio do caminho”. Priscila reprime sua identidade no intuito de ser tolerada por seus algozes, e o roteiro trata tal atitude como um ato de altruísmo e generosidade, ao invés de uma nova violência. Colocar agressores e vítimas em pé de igualdade, anistiando a ambos, equivale a uma forma muito deturpada de justiça social.
Ora, o longa-metragem estima que o afeto supera obstáculos, que o amor se torna mais forte do que qualquer opressão, e as feridas tendem a se reparar automaticamente, mais cedo ou mais tarde. Trata-se de uma visão tão gentil quanto ingênua das desigualdades sociais e da brutalidade exercida sobre indivíduos LGBTQIA+. A função reparadora do amor ignora responsabilidades institucionais e sociais pelo desprezo e pela segregação destas pessoas, como se a solução aos crimes de ódio viesse unicamente da boa vontade de sujeitos amorosos — quando estes últimos o desejarem, claro. Caberia às vítimas esperar pelo dia em que serão acolhidas de novo.
A Filha do Pescador certamente possui qualidades notáveis. Nathalia Rincón é uma atriz de talento, que consegue trazer sutilezas em meio ao bando de machos animalescos. A fotografia tende a tornar os dias nublados, dessaturados, evitando o retrato turístico daquela região — afinal, não existe nada convidativo no local onde ocorre tamanha brutalidade. O ritmo se mostra enxuto e eficaz em 80 minutos, que acentuam o caráter fabular da obra. No entanto, a iniciativa ainda resulta antiquada, uma espécie de cinema LGBTQIA+ conformista e dócil, capaz de observar agressões como uma boa oportunidade de superação pessoal.