A Filha do Pescador (2023)

Amai ao próximo

título original (ano)
La Estrategia del Mero (2023)
país
Porto Rico, República Dominicana, Colômbia, Brasil
gênero
Drama
duração
80 minutos
direção
Edgar de Luque Jácome
elenco
Nathalia Rincón, Roamir Pineda, Jesús Romero, Modesto Lacen, Henry Barrios, Roosevel Gonzalez
visto em
Cinemas

Uma ilha de pescadores, composta unicamente por homens. Mais do que isso, homens brutos e ignorantes. Até chegar uma inesperada presença feminina. Ela incomoda, por se tratar de uma mulher trans, mas também desperta curiosidade, desejo, além de um senso de posse — machos têm direito de controlar as mulheres, certo? A Filha do Pescador pretende confrontar o pensamento das cidades àquele das zonas contemporâneas ainda afastadas da modernidade. Contrapõe, igualmente, a masculinidade à feminilidade, e o conservadorismo às configurações múltiplas de gênero e sexualidade.

Deste modo, elege como protagonistas um pai violento (Samuel, interpretado por Roamir Pineda) e sua filha, rejeitada há muitos anos devido à transexualidade (Priscila, interpretada por Nathalia Rincón). Reúnem-se quando ela é perseguida pela polícia, e não encontra outro lugar para ficar. Todos os personagens são cercados, portanto, de uma aura de perigo: os homens se ameaçam com espingardas e arpões, enquanto a recém-chegada teria matado alguém antes de se refugiar na pequena comunidade. 

Para o diretor Edgar Alberto de Luque Jácome, abordar a transexualidade significa filmar o corpo, exteriorizando as dores de maneira explícita e visível ao espectador. Essa é uma estratégia comum na maior parte de filmes LGBTQIA+ voltados ao público cisgênero e heterossexual, a quem se pede mais carinho e tolerância. Acredita-se que a psicologia de um indivíduo trans seja difícil de gerar identificação, portanto a imagem privilegia os seios de Priscila, o cabelo cortado à força pelo pai, a maquiagem retirada do rosto sob ameaça. Ela precisa de uma gilete para se barbear, e procura pelas roupas da mãe falecida. O corpo, para este cinema prático e imediatista, soa como algo mais palpável

A iniciativa resulta antiquada, uma espécie de cinema LGBTQIA+ conformista e dócil, capaz de observar agressões como uma boa oportunidade de superação pessoal.

A questão trans passa principalmente pelo enfoque dado aos traços femininos num corpo que se esperava masculino — pelo menos, por parte dos demais personagens. Aí encontra-se um primeiro problema deste drama: o ponto de vista prefere se identificar com os homens cis-hétero que abrigam a jovem contra a sua vontade, do que se com a própria mulher trans. Demoramos a entender o que ela sente, o motivo real de sua fuga junto ao pai, ou como reage ao estupro cometido por um dos moradores da região. A câmera a observa à distância, na forma de um mistério que admira, mas não pretende decifrar de fato.

Priscila tinha amores? Amigos? Uma vida estável, apesar da prostituição forçada e de outros pequenos empregos? Como era aceita em sua identidade de gênero na cidade anterior? Que planos fazia para o futuro? Nunca saberemos. O projeto a reduz a um corpo parcialmente mudo, transparecendo uma indignação represada graças à sua impotência. Posto que precisa do pai neste momento, ela tolera os abusos cometidos por eles e pelos outros. É mais fácil compreender a atitude dela, neste contexto, do que aquela dos criadores, que nunca buscam uma maneira de representar, nem aludir, à vida lá fora

Por isso, a mulher trans se torna essencialmente uma vítima. Ela foge de uma agressão para encontrar outras junto aos pescadores. Fazia sexo em troca de dinheiro, e passa a fazê-lo em troca do silêncio sobre sua situação real. Jácome estima que homenagear esta figura equivale a explicitar todas as marcas em seu corpo (vide os planos de detalhe dos cortes nos braços, os close-ups no rosto sem maquiagem). Seguindo um pensamento paternalista e cristão, somos convidados a nos aproximar dela porque sofre — em outras palavras, uma relação de piedade, ao invés de identificação.

No entanto, graças ao otimismo em relação aos reencontros, A Filha do Pescador permite que pai e filha, aos poucos, se aproximem novamente. Trata-se da promessa básica, e um tanto previsível, desta forma de drama: duas pessoas que se odeiam são obrigadas a conviverem, até se conhecerem melhor e formarem laços de afeto. Buddy movies, road movies e outras formas de cinema exploram variações mínimas deste conceito. Logo, é preciso que o pai machista se torne um pouco menos autoritário, e que a filha se torne menos feminina, para que ambos se entendam. Ele larga a espingarda, ela abre mão de cabelo e maquiagem. 

O problema desta sugestão que ambos precisem fazer concessões para se entender reside na ideia de que transexuais e transfóbicos possuem o mesmo direito de ser respeitados, e de que ambos precisariam “atenuar” seus traços para o entendimento num utópico “meio do caminho”. Priscila reprime sua identidade no intuito de ser tolerada por seus algozes, e o roteiro trata tal atitude como um ato de altruísmo e generosidade, ao invés de uma nova violência. Colocar agressores e vítimas em pé de igualdade, anistiando a ambos, equivale a uma forma muito deturpada de justiça social.

Ora, o longa-metragem estima que o afeto supera obstáculos, que o amor se torna mais forte do que qualquer opressão, e as feridas tendem a se reparar automaticamente, mais cedo ou mais tarde. Trata-se de uma visão tão gentil quanto ingênua das desigualdades sociais e da brutalidade exercida sobre indivíduos LGBTQIA+. A função reparadora do amor ignora responsabilidades institucionais e sociais pelo desprezo e pela segregação destas pessoas, como se a solução aos crimes de ódio viesse unicamente da boa vontade de sujeitos amorosos — quando estes últimos o desejarem, claro. Caberia às vítimas esperar pelo dia em que serão acolhidas de novo.

A Filha do Pescador certamente possui qualidades notáveis. Nathalia Rincón é uma atriz de talento, que consegue trazer sutilezas em meio ao bando de machos animalescos. A fotografia tende a tornar os dias nublados, dessaturados, evitando o retrato turístico daquela região — afinal, não existe nada convidativo no local onde ocorre tamanha brutalidade. O ritmo se mostra enxuto e eficaz em 80 minutos, que acentuam o caráter fabular da obra. No entanto, a iniciativa ainda resulta antiquada, uma espécie de cinema LGBTQIA+ conformista e dócil, capaz de observar agressões como uma boa oportunidade de superação pessoal.

A Filha do Pescador (2023)
4
Nota 4/10

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