“Animale mistura o faroeste com a fantasia e o terror”, explica Emma Benestan

Uma das melhores surpresas do Festival de Filmes Incríveis 2024 é o francês Animale, de Emma Benestan. A cinesta franco-argelina aborda o meio tipicamente masculino da corrida com touros praticada na Camargue, sul da França. Neste meio, imagina uma mulher que deseja competir em meio aos homens, até perceber que as violências sociais podem ser muito mais perigosas que os animais selvagens.

Neste percurso, o filme passa do realismo social à fantasia, até se aproximar do terror. Oulaya Amamra, de Divertimento, encarna o papel principal, reprisando a parceria com Benestan desde a comédia romântica Fragile (2021). Depois de exibir seu longa-metragem na prestigiosa Semana da Crítica do Festival de Cannes, a cineasta veio ao Brasil e conversou em exclusividade com o Meio Amargo sobre este projeto que desafia tanto os gêneros sociais quanto os gêneros cinematográficos:

Como foi a experiência para filmar com os touros, e garantir que todos estivessem confortáveis perto dos animais?

Eu cresci perto do local onde filmamos, a 45 minutos de lá. Durante a adolescência, como de costume no sul da França, a gente ia para aquela região — não necessariamente para ver as corridas de touros, mas estes animais estavam sempre presentes. Mesmo as festas e feiras de vilarejo estavam cheias de touros. Então isso sempre fez parte da minha vida, mesmo que eu não seja da Camargue. Os touros sempre me fascinaram. 

Depois eu saí de lá para estudar cinema, mas mantive os laços com a Camargue. Voltei para fazer dois documentários na região, além de uma residência artística com adolescentes locais. Um destes filmes tinha como tema uma jovem mulher que competia nas arenas. Eu a acompanhei durante um ano e meio. Isso me inspirou muito para Animale, porque me deu vontade de fazer um filme de gênero. A Camargue é um lugar repleto de magia — os animais e a natureza são mágicos. Com tudo o que acontece hoje, sabemos que a natureza e os animais têm muito a nos contar. 

Enquanto pessoa vinda do sul, sabia que estas tradições são raramente representadas no cinema, então tinha vontade de filmar esta cultura também. Estas práticas muito regionais se conectam com lendas universais, a exemplo do mito do Minotauro, que todo mundo conhece. Queria questionar este mito e pensar que um touro errante pela região pudesse ser alguém com uma história para nos contar. O monstro podia, no fundo, ser apenas uma pessoa ferida. 

Foi complicado, porque trabalhamos com animais selvagens. Não dá pra dizer ao touro: “Vai pra esquerda, vai pra direita”. Então trabalhei com pessoas que nunca tinham participado de um filme, porque era fundamental ter pessoas acostumadas a lidar com os animais, e capazes de desempenhar ações que eu não conseguiria com atores profissionais. Um ator profissional precisaria de pelo menos seis meses para aprender o mínimo do que eles fazem desde a infância. Fizemos um trabalho com a diretora de elenco, num processo que levou cinco meses. Ensaiamos bastante para que todos ficassem confortáveis. Eles também me ajudaram demais, dizendo quando alguma ação não estava verossímil. Foi lindo, porque estas pessoas fizeram o filme comigo. Eles estavam muito felizes em mostrar sua cultura e sua tradição, mesmo que o projeto questione a violência desta prática. Mas eles estavam felizes de compartilhar este aspecto sagrado do touro. Por isso, ficaram muito felizes quando souberam que eu vinha ao Brasil.

Foi complicado, porque trabalhamos com animais selvagens. Não dá pra dizer ao touro: “Vai pra esquerda, vai pra direita”.

Este não é o seu primeiro filme com Oulaya Amamra. Por que acreditou que ela fosse ideal para este papel?

Eu escrevi o roteiro para Oulaya. Quando eu escrevo, sempre penso em atores específicos. Oulaya é uma atriz especial. No sistema de estrelas que vivemos na França, muitos atores e atrizes aceitam o papel, e uma ou duas semanas depois, já estão filmando. Para este papel, eu queria muito que ficasse correto, com uma atriz dedicada, e disposta a mergulhar durante vários meses na preparação da personagem. Oulaya tem essa qualidade, a exemplo dos atores americanos. Lembro que De Niro passou quatro meses dirigindo um táxi antes de Taxi Driver. Eu conheço Oulaya há 12 anos, e criamos uma continuidade em nossos trabalhos. Eu a conhecia quando ela tinha 16 anos, e eu, 25 anos. Depois de fazermos uma comédia romântica juntas, pensamos no tipo de personagens femininas que temos vontade de mostrar.

Era uma reflexão geral nossa a respeito do lugar de mulheres criadoras. Ela é uma aliada, então não tinha pensado em mais ninguém. Claro, se ela não gostasse do roteiro, ela não faria, sem problema. Mas ela está disposta a se tornar outra pessoa por meio de uma narrativa. É valioso encontrar alguém como ela. Para as histórias contadas em certas culturas repletas de códigos, este tempo de imersão e pesquisa é fundamental. Então precisamos ter atores e atrizes dispostos a olhar para os personagens em escala humana. Além disso, quando nunca vimos um touro de perto na vida inteira, leva um tempo para nos acostumar.

Além disso, existem elementos de fantasia e terror que se misturam ao realismo social. É um equilíbrio delicado de tons.

Foi um longo trabalho neste sentido. Com as produtoras e nossas principais colaboradoras, precisamos pensar desde o roteiro, e também na melhor maneira de apresentar o projeto na hora de buscar financiamento. Muitas pessoas têm medo de financiar filmes de gênero, sobretudo com esta temática, e com atores não-profissionais. Então elaboramos a premissa de estar sempre coladas à personagem, e não abraçar o gênero fantástico de imediato. Ele chega aos poucos, até a metáfora final, capaz de produzir algo forte — assim espero — junto à heroína.

Sempre fui grande fã de filmes de terror. Adorei Possuída (2000), além de A Marca da Pantera (1982), claro, que foi uma referência para nós. Também adoro Quando Chega a Escuridão (1987), da Kathryn Bigelow. Levei muitas referências ao diretor de fotografia, mas expliquei desde o princípio que não queria explorar o lado espetacular do cinema de gênero. Não queria que a gente perdesse o foco na trama e se distanciasse da protagonista. Por isso, chegamos progressivamente na fantasia, misturando um faroeste, a princípio, com um filme de fantasia e terror, ao final. Muitas pessoas questionam esta mistura: algumas adoram, outras acham estranho. 

Mas amo filmes monstruosos em sua abordagem. Existem vários elementos diferentes combinados: na minha comédia romântica, coloquei elementos da cultura argelina, das ostras, da dança de salão. Tinha uma noite improvável envolvendo uma falsa série de televisão. As pessoas me diziam que não era possível combinar tudo isso. Mas na vida a gente também tem registros diferentes acontecendo ao mesmo tempo. Amo as misturas. É um desafio, mas estas combinações fazem sentido pra mim, contanto que a gente não perca de vista a coluna vertebral do projeto, que é nossa personagem. 

Nos filmes de terror, vemos apenas as mulheres gritando de medo. Eu queria que o medo mudasse de lado, e que as mulheres gritassem para expressar outro sentimento, como a raiva. 

O filme se posiciona junto à única mulher num meio tradicionalmente masculino. Nejma também tem um melhor amigo gay. Como percebe esta disposição de gêneros e sexualidades no filme?

A questão de gêneros é fundamental para mim. Mesmo a comédia romântica anterior já questionava a relação entre gêneros e trabalhava a fragilidade masculina. Neste caso, as pessoas me diziam que eu estava prestes a fazer dois filmes totalmente diferentes, mas para mim, são dois lados da mesma moeda. Queria expor a fragilidade masculina enquanto explorava a potência feminina. 

Qual é a força de uma mulher? Como responder à tentação, neste feminismo de estúdio, de transformar as protagonistas na Mulher-Maravilha? Isso também nos limita. No filme, os personagens dizem o tempo todo a Nejma: “Seja forte! Você não disse que era forte?”. Queremos tanto ser fortes que não aceitamos a nossa fragilidade, nem percebemos as violências que sofremos. Para mim, este era o eixo do filme. 

Estamos em um meio onde os códigos são muito bem delimitados. Na arena, seja em Camargue ou na Espanha, imperam os homens. Existem pouquíssimas mulheres. Então qual é o preço para uma mulher que deseja fazer parte deste universo? Este imaginário da força não permite à mulher reconhecer sua fragilidade. Sinto isso enquanto mulher trabalhando no cinema. Nejma ama os touros, eu amo o cinema. Mas quando batalhamos neste percurso e chega algum revés, nos dizem: “Está vendo? Este caminho não é pra você, é culpa sua”. Nejma é muito culpabilizada por suas escolhas. 

Sendo feminista, e questionando tudo o que vi nos filmes de gênero durante a minha adolescência, tinha vontade de inverter os códigos. Nos filmes de terror, vemos apenas as mulheres gritando de medo. Somos resumidas ao medo. Eu queria que o medo mudasse de lado, e que as mulheres gritassem para expressar outro sentimento, como a raiva. 

Também era importante ter personagens masculinos positivos. Existe a figura paterna protetora. Aquele senhor não corresponde ao imaginário do pai homofóbico: ele sabe que o filho é gay, mas finge que não compreende para lidar com a comunidade. Além disso, existe este jovem que não se encaixa no estereótipo da virilidade, não necessariamente por ser homossexual, mas por não ter uma relação semelhante com os outros rapazes, nem com Nejma. É ele que enxerga as feridas dela e fala para irem imediatamente ao hospital, ao invés de dizer: “Seja forte”. Estes dois personagens são fundamentais para tratar o tema de maneira humanista, e acreditar na possibilidade de um masculino diferente. Existem formas opressoras de masculinidade, mas existem as vias que escapam à regra. A vida é complexa.

A diretora Emma Benestan, durante as filmagens de Animale

Ainda bem. Em Hollywood, geralmente a mulher forte tem uma arma na mão e vence dez homens no soco. Isso continua sendo um elogio da virilidade, só que emprestada às mulheres.

Exatamente. Para os homens, a arma na mão significa que são realmente capazes e corajosos. Já as mulheres precisam ser masculinizadas, e sexualizadas ao mesmo tempo. Tive um longo debate com a pessoa encarregada dos efeitos visuais. Sempre existiu na arte a sexualização do animalesco feminino. Mesmo na antiguidade, na mitologia, havia mulheres com serpentes no corpo. Nas mulheres, a parcela animalesca servia para sexualizá-las. A Marca da Pantera é o exemplo perfeito disso. Eu adoro o filme, mas queria dessexualizar este imaginário. Para nós, a animalização da protagonista não implicava em erotizá-la.

Atualmente, muitas mulheres reagem a este padrão no cinema de gênero e na comédia. Elas contam o que nós vivemos durante nossa adolescência. Penso em filme como A Substância, ou nos filmes de Julia Ducournau. Existe uma nova onda de cinema de gênero que me parece bastante benéfica, até porque esta linguagem serve para falar de temas muito íntimos, e de questões sociais importantes. 

Truffaut e Godard filmaram personagens femininas durante muitos anos, e nunca ninguém virou para eles e disse: “Por que estão falando de mulheres? Falem de homens, porque vocês são homens”. Mas para as cineastas mulheres, assim que falamos sobre homens, vêm nos dizer que não entendemos o universo masculino.

Já temos tantas histórias de mulheres contadas pelo olhar masculino, que me parece justo ter mais relatos de masculinidade pelo ponto de vista feminino.

É engraçado você dizer isso, porque na minha comédia romântica, o personagem principal era um homem, e na hora de buscar financiamento, sempre me perguntavam: “Por que você não escolhe uma mulher para o papel principal?”. Na verdade, acreditavam que, por eu ser mulher, eu teria uma versão melosa e idealizada do amor. Mas se um homem tivesse escrito a mesma história, tenho certeza que ninguém reclamaria de nada, pelo contrário, achariam genial. Truffaut e Godard filmaram personagens femininas durante muitos anos, e nunca ninguém virou para eles e disse: “Por que estão falando de mulheres? Falem de homens, porque vocês são homens”. Mas para as cineastas mulheres, assim que falamos sobre homens, vêm nos dizer que não entendemos o universo masculino.

Se é um filme feminista, então, escutamos que temos raiva dos homens. Dá um tempo, né? O feminismo existe para nos fazer progredir, para melhorar a comunicação entre nós. Ele nos permite falar das experiências que vivemos e compartilhar vivências em comum, incluindo abusos. Não é uma guerra contra os homens. Estamos numa sociedade doente, que precisa ser questionada e aprimorada. Mas sempre escuto a tese da “raiva contra os homens”. 

É raro receber qualquer incentivo para contar histórias sobre homens. Sempre acham que mulheres devem falar apenas sobre histórias de mulheres, enquanto os homens podem falar de todos os gêneros, sem questionamento. Pior ainda é quando chamam mulheres enquanto consultoras de roteiro ou de projeto, apenas para trabalharem as personagens femininas da trama. Ainda bem que existem mulheres para isso, mas esta cota mínima de feminismo serve a dar um verniz de legitimidade ao processo: depois, se alguém reclamar do tratamento de gênero no filme inteiro, vão dizer: “Ah, mas a gente teve uma mulher colaborando no processo”

Depois de uma sessão de Animale, uma pessoa me disse: “Que louco: todos os homens heterossexuais são horríveis, só o cara gay é legal”. Eu nunca teria pensado assim. Os três homens heterossexuais com o touro são bastante ambivalentes, assim como Nejma. Nunca teria partido para uma representação tão violenta, porque ela não faz sentido em sociedade. Nosso tema não é um ataque ao masculino.

Sempre que discutimos o gênero no cinema atual, vem uma espécie de desconforto, de mal-estar. Isso significa que ainda temos muito a processar coletivamente. Por isso, é apaixonante poder enfrentar estes temas. Percebo que a nova geração, felizmente, chega com outros modelos e personagens. Eles são mais ambivalentes e menos binários na percepção de gêneros.

Como têm sido as reações ao filme, desde a Semana da Crítica em Cannes?

Nós terminamos de filmar em novembro de 2023, então trabalhamos sem parar para dar tempo de mandar pra Cannes. Enviamos uma cópia não-finalizada ao festival, sem efeitos visuais. Terminamos o filme uma semana antes da sessão de estreia. Minha preocupação não eram os críticos e espectadores de Cannes, mas a reação dos meus atores e da equipe. Torcia muito para que o filme agradasse a todas estas pessoas da Camargue que dedicaram tanto tempo e carinho à realização do projeto. 

A projeção foi uma experiência engraçada, porque os atores riam o tempo inteiro de momentos que não eram engraçados. Eu ficava pedindo para eles ficarem quietos! Achei que seria um momento solene e emocionante, mas eles apontavam para a tela e riam: “Olha lá o touro do Renaud!”. Foi hilário. No final, quando as luzes se acenderam, eles estavam bem contentes com o resultado. A principal recompensa é essa. Depois de tantos anos de dedicação, em um filme feito com eles, soube que eles não estavam decepcionados, pelo contrário, ficaram orgulhosos. Foi um alívio, depois de tantas pessoas que tentaram desencorajar o projeto.

Fico fascinada pelo caráter onírico dos filmes brasileiros com protagonistas femininas, como Medusa. Esta mistura de gêneros, a coragem pra abraçar o kitsch e misturar com aspectos claramente políticos, é um risco que me fascina.

Tiveram pessoas contrárias à produção no início?

Sim. Na Camargue, muitas pessoas vieram me dizer que o filme era perigoso às tradições. O problema não era o filme em si, mas o fato de mostrar uma mulher na arena. Durante o teste de elenco, as pessoas batiam à porta para dizer que isso não existia, não tinham mulheres na arena, e por isso, era uma visão errada. Ficaram muito incomodados com a ideia de uma mulher competindo. E depois de tanto esforço, ver a satisfação daquelas pessoas que nos ajudaram e ficaram do nosso lado, foi comovente. 

Este é um meio muito masculino e muito misógino. Ele certamente tem muita beleza nesta relação grandiloquente com os animais e com espetáculo. É claro que muitas pessoas acabaram por me ajudar, mas ainda sofremos muita oposição porque era malvisto ter mulheres naquele espaço ao lado dos homens. Aí eu chego, na condição de mulher franco-argelina, com o projeto debaixo do braço, então é claro que enfrentei uma resistência ali.

Sobre as críticas, confesso que eu não leio, e nem presto atenção. Eu ainda testava muito envolvida no processo: tinha acabado de finalizar o filme, de terminar a mixagem e as legendas. Não tinha nenhum recuo. Depois disso, negociamos o projeto em 15, 20 países, e ele continua rodando os festivais. O mais importante agora é que ele circule, que seja visto. 

O Brasil faz parte desse processo, e eu fico bem feliz, porque tem muitos filmes de gênero brasileiros que chegam à França neste momento. Fico fascinada pelo caráter onírico dos filmes brasileiros com protagonistas femininas. Penso em filmes excelentes que eu vi, como Medusa. Esta mistura de gêneros, a coragem pra abraçar o kitsch, e misturar com aspectos claramente políticos, é um risco que me fascina. Queria muito conhecer o Brasil e me sentir acolhida numa cultura tão forte quanto ao feminino e ao cinema de gênero.

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