“Sou a irmã do diretor do filme Café Teerã. Meu irmão está na prisão agora”. Assim começa a apresentação de Neda Mihandoust ao público no cinema Reag Belas Artes, em São Paulo. A iraniana, que não trabalha diretamente com o cinema, e se refugiou no Canadá, está representando mundo afora o diretor Navid Mihandoust, que cumpre uma pena de prisão de 3,5 anos em seu país. Ela explica:
“A prisão não está ligada a Café Teerã, mas a um documentário de 2009, a respeito do jornalista Masih Alinejad. Na verdade, foi um acidente: houve um protesto nas ruas de Teerã contra o governo, alguns anos atrás. As pessoas se queixavam especialmente do preço da gasolina. Ele estava naquela rua por acidente, e foi preso por policiais. O celular dele foi apreendido, e pelo aparelho, descobriram que ele era cineasta. No dia seguinte, ele foi chamado para interrogatório e confinado na solitária durante um mês. Começaram a interrogar e descobrir todos os detalhes do trabalho dele. Navid foi liberado sob fiança, até chegar a data do julgamento. O processo não foi justo, na minha opinião. Embora ele tivesse um advogado, não lhe deram a chance de se defender de fato”.
Entre a decisão judicial e o dia efetivo da prisão, o autor se apressou para filmar, secretamente, a comédia dramática Café Teerã, apresentada no Brasil como parte do Festival de Filmes Incríveis. Na trama parcialmente autobiográfica, o cineasta Sohrab (Ramin Sayardashti) é preso devido aos seus filmes questionadores, e proibido indefinidamente de exercer a profissão de artista. Após cumprir a sentença, ele abre um estabelecimento cinéfilo, repleto de imagens de diretores pelas paredes. Mas se Sohrab não pratica a arte, ela vem até ele: certo dia, a jovem Berkeh (Setareh Maleki) pede ao homem para usar a cafeteria enquanto palco para suas performances subversivas. Esta é a oportunidade para o ex-cineasta expressar, através da voz de terceiros, seus pensamentos acerca da liberdade.
“Foi bem semelhante com o que aconteceu com ele”, pontua Neda. “Embora ele já estivesse em detenção, meu irmão foi chamado muitas vezes para interrogatório. Ficaram induzindo Navid a entrar em contato novamente com aquele jornalista — não sabemos ao certo o porquê. Tentaram fazer com que ele cooperasse. Meu irmão fingiu que colaboraria, apenas para ganhar tempo necessário para fazer seu próprio filme. Durante os interrogatórios, ele também usava uma linguagem bastante sarcástica, igual ao personagem do filme. Esta parte foi muito próxima dos fatos”.
“Essa chamada vem de dentro da prisão Evin”
Durante a conversa, o telefone de Neda toca. Ela avisa: “É meu irmão”. De dentro da prisão, ele utiliza seu direito esporádico a uma chamada telefônica para conversar com a irmã, sabendo que ela está concedendo entrevistas a jornalistas brasileiros naquele horário. “Pode fazer a pergunta direto pra ele”, permite Neda, que coloca o celular no viva-voz. “Ele vai ter que falar em farsi, porque o governo está ouvindo o conteúdo da conversa. Mas eu traduzo”. A conversa segue, então, com os dois irmãos em simultâneo.
O cineasta explica, a respeito dos cartazes espalhados pelas paredes do Café: “Enquanto cineasta, adoro Woody Allen, Krzysztof Kieślowski e Abbas Kiarostami. Parte do senso de humor do filme decorre destas referências. Na trama, o pai do personagem principal acaba de morrer — era um homem fascinado pela literatura. Depois do falecimento, o herói remove o pôster de Jim Jarmusch e substitui pela foto do pai. Isso é um humor silencioso para discutir o fato que cinema e literatura podem entrar em colisão às vezes”.
Mas a ironia não seria malvista pelos líderes iranianos? Navid explica que não: “O humor é a melhor estratégia contra governos totalitários. Desta maneira, os governantes ainda se sentem poderosos, e nem sempre entendem a mensagem. Se você escolher uma abordagem de afronta, a reação é muito mais severa. Por isso, prefiro o senso de humor”.
Ocasionalmente, uma voz feminina se sobrepõe à voz de Navid ao telefone. Neda justifica: “Esta voz é uma gravação. Em farsi, a voz da mulher está dizendo: ‘Esta chamada vem de dentro da prisão Evin’. É uma gravação padrão nas ligações da prisão. Navid pediu para eu te explicar isso”. O próprio cineasta sublinha: “Senão os brasileiros vão pensar que temos mulheres dentro da prisão masculina!”, ele brinca. Irmão e irmã riem.
“Meu irmão tem ótimo senso de humor, mesmo agora, na prisão”, justifica Neda. “Ele tem uma personalidade muito forte. Mesmo que aconteçam coisas muito graves na vida privada dele, a reação costuma ser o humor”.
“Se eu voltar ao Irã, serei presa na hora”
Ora, o fato de ter realizado outro longa-metragem contra o governo, após sua sentença de prisão, não agravaria a situação do cineasta? “Ainda não! Ele ainda está preso somente pelo documentário anterior. Mas o governo sabe, obviamente, que ele fez outro filme. Ainda não sofremos nenhuma reação severa a respeito”, comemora a irmã. Entretanto, pondera:
“A jovem atriz do filme precisou sair do Irã, por exemplo. O elenco teve que tomar cuidado. Já é muito difícil para atores em geral, que precisam seguir à risca as regras oficiais. Em geral, no Irã, os cidadãos sabem que estão em risco o tempo inteiro. Podemos ser presos em qualquer lugar, a qualquer momento. Como represento meu irmão, sei que não posso voltar ao Irã. Se eu voltar, serei presa na hora. Mas quem ainda trabalha e vive em Teerã sabe que corre risco a qualquer momento. Graças a Deus, nenhum dos artistas ligados a Café Teerã foi retaliado pela participação no filme — pelo menos, ainda não”.
Na narrativa fictícia, Sohrab se distancia da esposa devido ao tempo encarcerado, e não consegue mais estreitar os laços depois de cumprir a pena. Esse era um elemento importante do projeto para Navid, que desejava retratar o impacto das políticas autoritárias nas relações afetivas:
“Por causa da prisão, os artistas são proibidos de exercer a sua arte, mas as restrições vão além disso. A vida privada é duramente impactada pelo cárcere. É claro que isso não acontece apenas no Irã. Mas os relacionamentos são prejudicados demais pelo afastamento. Queria muito retratar a maneira como a opressão afeta a intimidade das pessoas”, ele comenta. Por isso, o protagonista da ficção carrega um feto humano dentro de um jarro de vidro, representando o filho que nunca teve com a esposa.
“Eu não queria exatamente usar o feto enquanto símbolo. Queria explorá-lo como uma presença exótica, um elemento de estranhamento. O objetivo principal era refletir o estado psicológico do personagem. A relação dele com a esposa não era comum, nem saudável. Por isso, queria mostrar que a ligação com o filho inexistente reflete um laço afetivo desfeito, frágil”, esclarece.
“Não acredito que ele possa responder a essa pergunta”
Quando o bate-papo se volta a aspectos mais evidentemente políticos, Navid precisa medir as palavras. Questionado sobre o papel concreto a repercussão internacional poderia exercer em sua busca pela liberdade, a irmã pontua, de imediato: “Não acredito que ele possa responder a essa pergunta”, ao que Navid completa, solícito: “Mas assim que desligarmos o telefone, minha irmã responde pra você”.
De fato, após o fim da chamada, Neda transmitiu os pensamentos do cineasta:
“Ele sempre diz que as paredes da prisão não podem confinar as ideias e pensamentos dos artistas. Contanto que o mundo saiba o que acontece no Irã, e o que ocorre aos artistas neste país, teremos feito a nossa parte. O mundo precisa saber. Não queremos que outros países acreditem que estamos em situação de normalidade, como o governo insiste em dizer. O governo começa a ficar cauteloso quando o mundo descobre esta opressão, e a repercute. Quando a voz dos prisioneiros políticos é ouvida, os governantes ficam com mais receio de agir de maneira arbitrária contra eles. Por exemplo, eu penso no caso dos cidadãos comuns, que não são artistas, nem pessoas reconhecidas fora do país. Elas são presas, agredidas, torturadas. Mas quando o resto do mundo descobre estes fatos, eles agem com mais cautela. Por isso, queremos que todos saibam o que acontece no Irã. Espero que isso afete positivamente a situação de Navid”, conclui.
Esta é a carta completa lida por Neda Mihandoust em São Paulo:
Sou Neda Mihandoust, irmã do diretor do filme Café Teerã. Meu irmão está na prisão agora. Ele começou a cumprir uma pena de três anos em 20 de agosto de 2023. As acusações injustas contra Navid decorrem de um documentário que ele filmou em 2009, sobre a vida profissional de Masih Alinejad (um jornalista iraniano e ativista pelo direito das mulheres). O documentário nunca foi lançado. Tenho um coração cheio de pesar e raiva, além e lágrimas nos olhos de representar a voz dos oprimidos e daqueles que lutam por liberdade, como meu irmão.
A história de Café Teerã se assemelha ao que aconteceu com o meu irmão no Teerã. Liberaram meu irmão sob fiança por cerca de 3 anos, e pediram que ele cooperasse a entrar em contato com o jornalista Masih Alinejad, sob pretexto de fazer um novo filme. No entanto, meu irmão não cooperou, e driblou o sistema judicial para ganhar o tempo de fazer seu novo filme, que era um de seus sonhos, ao retratar as injustiças que acontecem neste país. Agora, eu leio a mensagem de meu irmão para este festival.
Estou profundamente honrado que meu filme seja exibido no Brasil, na cidade de São Paulo, para um público especializado. Ao mesmo tempo, fico muito triste que, devido às circunstâncias criadas pela República Islâmica do Irã, sou privado da felicidade de ver as suas reações durante a sessão.
Para alguém como eu, que ainda não tive o prazer de visitar o seu país, o cinema brasileiro é muito conhecido e admirado por causa de cineastas pioneiros como Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos, além de diretores dissidentes da próxima geração, como Glauber Rocha, e cineastas de grande sucesso comercial, como Hector Babenco e Walter Salles.
Eu tinha muita vontade de ver a sua linda cidade histórica, que é uma das cidades mais populosas do Brasil, e conhecer a comunidade artística e cultural pessoalmente, algo que infelizmente não aconteceu.
Quero que vocês saibam que meu filme foi feito com baixo orçamento, principalmente por causa dos obstáculos criados pelas autoridades para filmes independentes. Esse tipo de pressão também foi vivenciada pelo famoso diretor brasileiro Glauber Rocha nos anos 1970, mas não podemos esquecer que estamos agora na terceira década do século XXI. Eu acredito que a comunidade artística global não deva ficar indiferente a tais pressões.
Espero ansiosamente as suas reações ao meu filme, e espero que gostem. Entendo que artistas pareçam ter poder limitado em comparação com políticos, mas nós temos um poder escondido em nossos trabalhos, com o potencial duradouro de se concretizar a qualquer momento.
Daqui da prisão no Teerã, eu acompanho a exibição do meu filme no seu festival, e tenho grandes esperanças que seu apoio moral me ajude ao longo desta prisão injusta que me foi infligida. Enquanto isso, os políticos deveriam saber que os muros da prisão não são altos o suficiente para prender os pensamentos dos artistas.
Eu fico ansioso pelo dia em que artistas do mundo inteiro serão livres para expressar suas opiniões e ideias, e espero que os líderes políticos compreendam que o mundo é mais belo com arte e liberdade do que com política e ditadura.