A Censora (2021) funciona como uma máquina muito precisa. O diretor Peter Kerekes tem uma ideia precisa do que deseja em termos de cores, ritmos e enquadramentos, e jamais desvia um milímetro sequer de sua proposta inicial. Por isso, o filme impressiona tanto pelo rigor quanto pela dureza da condução. O cineasta parece amar as 107 mulheres grávidas da prisão de Odessa assim como ama a paleta bege, azul e branca, e os planos fixos de interações coletivas.
Para quem admira numa obra sua coesão, o projeto deve provocar fascínio: este é o tipo de filme facilmente reconhecível por qualquer fotografia still perdida por acaso entre imagens de filmes distintos. A maneira como dezenas de mulheres são condicionadas a olhar diretamente para a câmera, além da luz natural e fria, entrando pela janela e contornando os corpos, produzem uma unicidade exemplar. Esqueça os riscos de metáforas inesperadas, instantes mais agressivos ou recursos de possível mau gosto. O projeto eslovaco-tcheco-ucraniano porta uma elegância inabalável, da primeira à última cena.
O principal risco acatado pelos criadores se encontra no desejo de reproduzir o real diante das câmeras. Os produtores devem ter encarado dificuldades expressivas para filmar um parto real ao vivo; os corpos nus de dezenas de mulheres grávidas na mesma cena; interações entre garotinhos de três anos de idade sozinhos numa sala; e um mar de bebês chorando em uníssono numa maternidade carcerária durante a madrugada. Nada de sugerir os choros pelo som em off, nem de criar barrigas falsas: o cineasta busca uma experiência de imersão.
Assim, seria fácil admirar o longa-metragem pela impressão de dificuldade, e pelo mecanismo rebuscado, viabilizado com sucesso. Outra leitura, em chave oposta, poderia criticar Kerekes pela fé limitada na ficção e na crença cênica, ou seja, pela necessidade de reproduzir e apreender o real, ao invés de representá-lo. A linguagem cinematográfica teria inúmeras maneiras de sugerir a tristeza das mães separadas dos bebês, ou o medo de parirem na prisão. O autor prefere sua ilustração mais realista, direta, e também a menos inventiva.
Felizmente, o drama não depende da técnica sofisticada para se fazer admirar. A estética caminha lado a lado com uma preocupação no retrato dessas mulheres.
Felizmente, o drama não depende da técnica sofisticada para se fazer admirar. A estética caminha lado a lado com uma preocupação no retrato dessas mulheres, com destaque para duas delas: Iryna (Iryna Kiryazeva), guarda da prisão e conselheira das detentas, e Lesya (Maryna Klimova), recém-encarcerada. A primeira, apesar do cargo de autoridade, transborda de afeto pelos bebês, e a segunda acaba projetando no filho pequeno a raiva que sustenta por se encontrar na prisão.
Trata-se de duas personagens complexas, que se desenvolvem cena a cena. As duas mulheres estão repletas de contradições e falhas, o que as tornam ainda mais verossímeis aos olhos do espectador. A “censora” do título, responsável por bloquear com caneta preta as frases indecorosas nas cartas enviadas às prisioneiras, aprecia com sinceridade os momentos passados junto às outras mulheres, e aplaca sua solidão ao ouvir as histórias alheias. Diante do real árduo, ela se refugia em sonhos. Já a segunda carrega um misto de cansaço, ira, inconformidade e desinteresse, alternados em cenas de poucos diálogos.
Ambas comprovam o talento de Kerekes para a direção de atores. O elenco está coeso, preferindo atenuar gestos e expressões, visto que a forma já sobrecarrega as imagens de tensão e significados. Em consequência, o olhar da direção e aquele do público podem se manter a certa distância das mulheres: nunca somos convidados a chorar por elas, nem a torcer enfaticamente por sua soltura, ou pelo reencontro com os bebês. O foco é diluído: a cada aparição de Iryna e Lesya, dezenas de coadjuvantes ganham cenas autônomas. O verdadeiro protagonista seria a coletividade feminina, neste universo onde homens inexistem.
Em paralelo, o olhar da direção busca um equilíbrio entre manifestar ternura por elas e esclarecer os crimes que cometeram. Em outras palavras, elas não são julgadas moralmente, nem de maneira positiva, nem negativa. Alguns filmes a respeito de detenções preferem ocultar as ilegalidades cometidas, como se a melhor maneira de respeitar estas pessoas se encontrasse na minimização de seus percursos. Kerekes, por sua vez, deixa cada personagem confessar à câmera os assassinatos de maridos e amantes. Ninguém chora, tampouco demonstra prazer sádico no ato. Foi algo que aconteceu, simplesmente.
Este distanciamento se torna possível tanto pela escolha de enquadramentos — a simetria, a luz inalterada e os planos abertos atenuam os sentimentos — quanto pela atenção a regras e procedimentos. O roteiro privilegia as revistas dos corpos, os trabalhos braçais, as caminhadas em conjunto até a maternidade, onde as mães amamentam os bebês de madrugada, quase dormindo. Até os flertes de Iryna ocorrem numa noite de encontro de solteiros, quando precisam efetuar curiosas danças com balões presos entre os dois rostos.
O drama convida o espectador a enxergar o realismo por um prisma quase fantástico, próximo do absurdo. Não existe nada natural nesta forma de romance, nem na maternidade onde dezenas de mães limpam os seios simultaneamente, antes de receberem os respectivos filhos que chegam num carrinho de rodas. Quanto mais investe nos procedimentos artificiais do meio carcerário, mais provoca um atrito interessante com o “fazer real” da direção.
Naturalismo e formalismo se chocam sem parar, de maneira controlada e prevista pelos criadores. A Censora mergulha num microcosmo tão plausível quanto insano; tão repleto de afeto quanto de normas rígidas e desumanizadas. A riqueza deste projeto se encontra nesta união inesperada de oposições e incompatibilidades, afinal, a infância é percebida como período de liberdade e descobertas, em contraste com o cenário de paredes azuis e muros fechados. Somos convidados a ampliar nosso escopo de conceitos, tanto da maternidade quanto da prisão.