A Different Man (2023)

Máscara sobre máscara

título original (ano)
A Different Man (2023)
país
EUA
gênero
Drama
duração
112 minutos
direção
Aaron Schimberg
elenco
Sebastian Stan, Renate Reinsve, Adam Pearson
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Um personagem de aparência não-convencional leva uma vida solitária, com um pequeno emprego mal remunerado, e tentando evitar os comentários de desprezo sobre seu corpo. Ele é frustrado sexualmente e possui baixa autoestima, sendo tolerado apenas pela amiga mais próxima, que passa em seu apartamento com frequência para lhe fazer companhia. Esta descrição vale tanto para A Baleia (2022) quanto para A Different Man (2023), dois filmes produzidos pela A24. 

No entanto, enquanto o filme de Darren Aronofsky fazia um mergulho na psicologia do personagem, investigando elementos de rejeição e a proximidade com a morte, Aaron Schimberg possui outro foco. A curta apresentação desta vida triste (o protagonista Edward descongela seu jantar no microondas enquanto coloca vídeos no YouTube para aprender a assobiar) é deixada de lado em prol de questionamentos filosóficos amplos: qual o direito de pessoas não-deficientes representar aquelas com deficiência no cinema? Precisa ser um ator deficiente no papel principal? Por qual ângulo revelar suas dores e ambições?

No caso, o protagonista (interpretado por Sebastian Stan) possui neurofibromatose, síndrome crônica que leva a uma deformação dos tecidos. Ele passa sua vida adulta sendo encarado por estranhos no metrô e nas praças públicas, enquanto luta para conseguir algum emprego digno. Ao passar por uma terapia experimental, consegue se livrar por completo desta condição, ganhando uma aparência convencional. Agora, Edward precisa lidar com o próprio rosto no espelho, e com a pessoa “nova” que deseja ser.

O diretor utiliza seu protagonista de maneira exemplar (um homem com deficiência, esvaziado de pulsões e complexidade). Preocupado em ser correto, o filme tampouco parece muito vivo, nem empático.

Para o cineasta e roteirista, trata-se de mero ponto de partida para questionar os limites éticos e morais da representação da alteridade. Ele se importa pouquíssimo com processos, ou o impacto emocional das transformações na vida deste homem. Cada guinada é acompanhada de mais uma, e depois outra, e outra, pois o filme tem pressa de testar seu dispositivo e ir a fundo de sua tese metonímica. Por isso, o adulto outrora deformado se torna modelo em banners publicitários; e a vizinha com planos de dramaturga surge com uma peça pronta, a respeito — vejam só — do homem com neurofibromatose que um dia conheceu.

O roteiro está repleto de golpes do destino destinados a fazer Edward e a artista Ingrid (Renata Reinsve) testarem seus princípios. Quando começam os testes para o espetáculo, o Edward real, de rosto “normalizado”, apresenta-se para o papel. Mas que direito teriam de usar uma máscara, ao invés de escalarem um ator com neurofibromatose real? Não estariam criando um ponto de vista de vítima, a partir de um sujeito passivo demais? A exposição deste rosto não o aproximaria de uma atração de circo? 

A Different Man é um filme incrivelmente consciente de todas as críticas que possam lhe fazer. Pode ser taxado de explorador por ter como protagonista um homem sem deficiência, deixando deficientes reais em segundo plano. Seria visto como exagerado na maquiagem, até revelar outro sujeito de aparência semelhante. Arrisca receber acusações de espetacularização da dor alheia, de enriquecer a partir da miséria de outros, de não lhes conferir lugar de fala. Ora, poucas obras possuem tamanha ciência destes questionamentos, de modo a introjetar as respostas antecipadamente na narrativa.

Em última instância, o drama se interessa menos por Edward, enquanto indivíduo com uma síndrome rara, do que pela ideia de Edward, uma pessoa deficiente. O verdadeiro tema do projeto seria a dificuldade de retratar a diferença no século XXI, quando há tantas demandas (muito legítimas, por sinal) de protagonismo, diversidade, inclusão social, respeito, etc. O texto transporta à peça de teatro todas as dúvidas que parece ter cogitado durante a elaboração do longa-metragem, fazendo do resultado um filme sobre o filme, uma imagem a respeito da capacidade e do direito de elaborar uma imagem.

Neste sentido, soa incrivelmente contemporâneo, por estar preocupadíssimo com a opinião alheia, e com a sensibilidade de todos. Quer soar ao mesmo tempo corajoso e responsável; ousado e comedido. Deseja chocar pela abordagem do tema incomum, enquanto de fato não incomoda ninguém, visto que terá, para cada reivindicação, sua devida justificativa. O filme incorpora a trama, a reflexão posterior sobre a trama e os debates com a imprensa, todos devidamente triturados e espalhados ao longo da experiência. Vira assim um filme sobre o direito de fazer um filme.

Schimberg ganharia nota 10 em termos de autocontrole, vigilância e precauções. De fato, é difícil lhe acusar dos principais males de representatividade que afetam tantas iniciativas a respeito de temas semelhantes. No entanto, receberia uma nota modesta no que diz respeito à capacidade de afirmar algo a respeito de seu próprio tema. Em outras palavras, o autor prepara uma defesa tão sólida que se esquece de contra-atacar, ou de simplesmente manifestar um ponto de vista relacionado a pessoas com deficiência, ou somente diferentes dos padrões. O que ele tem a dizer a partir de Edward?

Assim, as transformações abruptas, umas mais absurdas que as outras, se tornam convenientes para testar cada etapa de seu projeto de pesquisa. E se Edward de rosto “normal” interpretar o deficiente? E se de repente surgir um deficiente real postulando ao cargo? E se o homem “belo” se sentir substituído pelo outro, considerado socialmente como feio? E se, e se, e se… A narrativa lança mais hipóteses do que consegue desenvolver, em termos afetivos ou simplesmente humanos. Possui o nível de sensibilidade de burocratas decidindo ser tal escalação de sua propaganda de cerveja será cancelada ou não. Acreditam que não? Maravilha, seguimos em frente. Boa ou ruim, aí já é outra história.

O importante aos criadores é passar pelo crivo das redes sociais e da hipocondria moral em tempos de Internet. Em certa medida, o tom pesaroso representa muito do que a A24 vem desempenhando nos últimos anos, em busca de um cinema progressista, mas não a ponto de irritar os conservadores; ousado, mas não o bastante para alienar o público médio; representativo, mas ainda trazendo atores da Marvel em primeiro plano. Um comprometimento do consenso.

Em paralelo, A Different Man incomoda pela tentativa de fazer humor a partir do grotesco. É claro que nenhuma piada decorre da aparência de Edward, ou dos demais personagens “diferentes”. No entanto, associa-se o mundo ao redor dele a algo nojento. Há uma mancha preta pingando alguma secreção estranha no apartamento do protagonista. Sua ferida aberta secreta sangue, e mesmo o chocolate espalha o recheio gosmento por todos os lados. O homem arranca a própria pele durante o experimento médico, em planos próximos. 

Aparentemente, o único elemento que o cineasta retém do body horror, e dos referenciais dos anos 1970 que permeiam a trama, reside no direito ao nojo, à repulsa. Entretanto, a metáfora dos monstros enquanto ícones de desajuste social num nível mais amplo está ausente. Aqui, a doença é medicalizada até ser considerada apenas isso: uma doença. Pouco importa o passado de Edward, seus desejos íntimos, os planos profissionais para o futuro, ou apenas o choque de se perceber numa pele totalmente diferente. 

O herói resta na posição de objeto, servindo ao estudo de caso “Temos o direito de abordar uma experiência de vida diferente da nossa nas artes?”. Em certa medida, o diretor faz com seu protagonista algo muito semelhante com o que o diretor fictício de comerciais, dentro da trama, fazia com Edward enquanto ator: utilizá-lo de maneira exemplar (um homem com deficiência, esvaziado de pulsões e complexidade). Preocupado em ser correto, o resultado tampouco parece muito vivo, nem empático.

A Different Man (2023)
4
Nota 4/10

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