Mário voltou do mundo dos mortos. Cavou sua fuga terra afora, no intuito de se vingar dos homens poderosos que o perseguiram. A Fúria (2024) parte de um princípio fantástico, uma liberdade poética. Para concluir a trilogia iniciada por Os Fuzis (1964) e A Queda (1978), Ruy Guerra (desta vez, em codireção com Luciana Mazzotti) resgata seu personagem principal face a uma nova injustiça. Se o protagonista enfrentava os soldados no Nordeste, inicialmente, e depois, os responsáveis pela morte de um operário, agora ele se confronta aos principais nomes da política: empresários, ministros, governadores, pastores evangélicos.
Ao invés de Nelson Xavier, agora o ator Ricardo Blat toma as rédeas da narrativa, representando a voz do povo contra a opressão sistêmica. Ele enfrenta figuras conhecidas dos filmes anteriores, algumas delas, interpretadas pelos mesmos atores, caso do companheiro Pedro (Paulo César Pereio) e do magnata encarnado por Lima Duarte. Antonio Pitanga é outro nome essencial do Cinema Novo que retorna para mais uma participação nesta saga denominada, pelo Festival de Brasília, como thriller político.
O resultado impressiona e incomoda pelos mesmos motivos. O cineasta de 93 anos atualiza para o século XXI algumas estratégias do cinema político que desapareceram na nova geração, sendo substituídas por novas linguagens. Assim, A Fúria soa ao mesmo tempo novo e antiquado, ousado (pela combinação de estilos) e previsível (por empregar uma estratégia tão comum no cinema daquela geração). De qualquer modo, não passa despercebido: pouquíssimos filmes nas salas de cinema atual se comunicam desta maneira — para o bem ou para o mal.
O resultado impressiona e incomoda pelos mesmos motivos. O cineasta de 93 anos (em parceria com Luciana Mazzotti) atualiza algumas estratégias do cinema político que desapareceram na nova geração.
Isso significa que Guerra e Mazzotti retomam parte do afrontamento histriônico, messiânico e catártico do Cinema Novo. As frases de efeitos transbordam não apenas nos diálogos, mas em equivalências imagéticas: é preciso que todas as escolhas sejam claras, repetidas, GRITADAS ao espectador, num gesto de afronta e alarme público a quem interessar possa. Nunca se busca sutileza, ambiguidade, nem ponderação: os políticos malvados são profundamente perversos; a caricatura do representante nazista corresponde evidentemente a Jair Bolsonaro; e os pastores pedindo PIX aludem aos conhecidos líderes de igrejas.
Ao menos, os exageros são assumidos graças ao cinema de gênero. Além do herói morto-vivo, temos inimigos bebedores de sangue (literalmente) e sujeitos gritando contra “essa tartaruga empalhada chamada democracia”. Entretanto, se cabe à direita um desprezo profundo, a esquerda carrega algumas nuances. As três mulheres que encarnam a voz progressista tampouco se revelam anjos caridosos — a política Petra (Grace Passô) cogita estabelecer acordos escusos com os conservadores para avançar suas pautas de predileção. O sonho revolucionário do diretor ainda passa pelo toma lá, dá cá.
A linguagem acompanha o fervor do discurso. Filmado em textura digital e situado inteiramente em estúdio, o filme assume suas luzes duras e embranquecidas de refletores, além das projeções ao fundo, beirando a abstração. Cria-se desta maneira certo clima de purgatório — todos os personagens aparentam se deslocar às portas do inferno, caso em que o retorno de Mário resulta orgânico. A câmera move-se feito pêndulo, angulando as imagens e deslocando-se freneticamente, mesmo quando há dois homens parados, conversando à sua frente. Imprime-se um dinamismo febril a fórceps.
Surge então uma impressão de vertigem e hipnose (favorecida pelo círculo giratório ao fundo de algumas imagens). A temporalidade se torna difusa, propositadamente, enquanto o espaço permite unir, sobre o mesmo palco teatral, o Congresso e as comunidades indígenas; as garagens onde ocorrem acordos secretos e o espaço sideral, com flechas atravessando os anéis de Saturno. Apesar dos caminhos ziguezagueantes desta cosmogonia política, mantém-se uma narrativa linear, até convencional: todo o conflito nos prepara para o acerto de contas entre Mário e seus algozes no clímax (“Na nossa história sempre aparece um fuzil”, ele brinca).
Em consequência, os diálogos explicativos e a visão social pedagógica (simplificada ao limite do arquétipo) se justificam pela abordagem assumida — como reclamar da artificialidade de um filme assumidamente artificial? Em qualquer obra naturalista, declamações políticas do tipo “Só o fascismo mantém o dinheiro concentrado na mão de quem manda” soariam óbvias (o perigo da constatação do óbvio). Ademais, seriam percebidas como fraquezas evidentes os diálogos onde personagens informam um ao outro sobre algo de que ambos já sabem, apenas para explicar ao espectador (“A gente tinha 8 anos no nosso primeiro duelo”, “Nós conseguimos uma vez levar 20 companheiros no exílio”).
Ora, nossos principais filmes políticos pós-Retomada têm multiplicado as ferramentas do cinema de gênero (Bacurau, Propriedade, Medusa, Vento Seco) e colocado as minorias enquanto protagonistas (Baby, Levante, Pedágio, Branco Sai Preto Fica, Arábia). Sobretudo, a nova geração tem proposto vias revolucionárias através de metáforas poéticas, em especial, o incêndio capaz de destruir estruturas viciadas e propor um recomeço sobre as cinzas (caso de Bacurau, Fogaréu, Fim de Semana no Paraíso Selvagem, Suçuarana, Pacto da Viola). Trocamos o importante símbolo do mar, enquanto esperança, pelo fogo, sinal de indignação.
Apesar destas reflexões, é provável que A Fúria seja analisado sobretudo pelo nome de Ruy Guerra na direção. Quando se apresentou nos palcos do Cine Brasília, foi (merecidamente) aplaudido de pé. O fato de ter concluído uma nova obra em idade avançada alça o longa-metragem ao status de proeza, além de um possível filme-testamento, com a responsabilidade de, eventualmente, encerrar uma carreira. A conexão com duas de suas obras mais aclamadas (Os Fuzis e A Queda), ambas premiadas no Festival de Berlim, também atribui um valor suplementar à iniciativa.
Logo, eventuais prêmios recompensariam o esforço e a persistência de um diretor politizado, que não atenuou seu furor progressista com o passar dos anos, pelo contrário (vide a catártica conclusão). Sem ter muito a perder, nem temer represálias, Guerra opta por um destino sangrento à extrema-direita. Através deste projeto, ele fala sério, mas também se diverte, carnavalizando os procedimentos, alegorizando as relações de poder. Não se trata da obra mais sutil, nem a mais polida, a passar pelos festivais brasileiros. No entanto, aos jovens cineastas que disputam os troféus Candangos em Brasília, ela aponta para as mutações do audiovisual engajado. Indica como fazíamos antes, como se passou a fazer hoje, e de que maneira estes caminhos poderiam se encontrar.