A Mensageira (2024)

Um labirinto perigoso

título original (ano)
A Mensageira (2024)
país
Brasil
gênero
Drama, Fantasia
duração
140 minutos
direção
Cláudio Marques
elenco
Clara Paixão, Edvana Carvalho, Vladimir Brichta, Hamilton Borges, Evelin Buchegger, Márcia Limma
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

A Mensageira nos apresenta a um mundo estranho. Pela perspectiva do cineasta Cláudio Marques, a cidade de Salvador se tinge de um preto e branco bastante acinzentado (não há, propriamente falando, nenhum preto profundo nem branco absoluto nas cores). As ruas estão estranhamente vazias, distantes do furor turístico costumeiramente associado à capital baiana. As pessoas ocupam apartamentos silenciosos, vazios, pouco acolhedores. 

Existe um caráter inóspito na ambientação, cuidadosamente orquestrada pelo diretor de fotografia Flávio Rebouças. A impressão inicial apenas se aprofunda: conforme a oficial de justiça Íris (Clara Paixão) descobre o submundo corrupto do sistema legal brasileiro, ela mergulha em cenários ainda mais surrealistas, inspirados em Franz Kafka e outros especialistas no absurdo do real. “Abra os olhos, Íris”, parecem reclamar o namorado, a mãe de santo, a colega de trabalho, e o próprio filme. 

Isso porque a jovem acredita cegamente — o termo é irônico — na justiça. Cumpre mandatos e sentenças sem questionar a validade de tais julgamentos. “Eu apenas sigo ordens”, repete com certa insistência. Suas certezas começam a ruir diante do caso de um ativista pacífico (Hamilton Borges), que desaparece após uma condução à delegacia. Os superiores suplicam à heroína que esqueça o caso, siga adiante. Ela fez o seu trabalho, e ponto final. Entretanto, em suas investigações pessoais, descobre interesses políticos em provocar o sumiço de Anderson (nome que evoca, entre outros, o assassinato de Marielle Franco).

O longa-metragem se concentra na perda da inocência. A heroína desfaz a crença utópica numa justiça imparcial, confrontando-se ao racismo enquanto denominador das organizações sociais.

O longa-metragem se concentra, portanto, na perda da inocência. Esta premissa encontra seu nicho ideal nas personagens fictícias de crianças e adolescentes, descobrindo pela primeira vez o caráter amargo da vida adulta. Aqui, de certa maneira, Íris também amadurece. A heroína desfaz a crença utópica numa justiça imparcial, confrontando-se ao racismo enquanto denominador das organizações sociais. Portanto, o espectador é levado a se identificar com a mulher tão correta — incorruptível, nas palavras do personagem interpretado por Vladimir Brichta — quanto ingênua. O filme trata de lhe mostrar, por meio de uma violência simbólica, que tais idealizações não se sustentam num Brasil contemporâneo.

O preto e branco o distanciamento em relação à sociedade, assim como o formato da imagem, mais próximo do quadrado. A janela em 1 : 1,66 deixa os rostos e corpos espremidos no canto do enquadramento, desconfortáveis, deslocados. Como se estas perturbações não fossem o bastante, a narrativa passa a incluir pesadelos (as mãos batendo no carro, um encontro com o “diabo” digno de Fausto), e simbologias acerca da dificuldade de ver. Afinal, a protagonista se chama Íris, não consegue abrir os olhos à complexidade sociopolítica, e manifesta problemas na vista, que a levam a utilizar colírios constantemente.

Não se trata da metáfora mais sutil do mundo, é claro. Ela se torna ainda menos potente quando uma personagem a explica ao espectador. A direção demonstra uma mão pesada para a iconografia, sempre mastigada ao público — vide o quadro de Arthemis, transfigurada em deusa da justiça, e a atriz convertida em estátua, segurando a balança. Os significados são evidentes, e dispensáveis em meio à discussão complexa, e repleta de nuances, a respeito da ética e da moral.

O elenco ajuda a tornar este universo palatável, ainda que próximo de um mundo de sonhos. Clara Paixão e Evelin Buchegger estão ótimas ao manejarem os diálogos de maneira protocolar, monocórdica, entre a amizade, a provocação e a sedução. (Nunca se sabe ao certo se as personagens se amam ou odeiam — talvez os dois). O aspecto de transe das atuações conduz o filme ao teor simbólico e etéreo que almeja. Afinal, os personagens representam mais do que si próprios, constituindo funções sociais e analogias políticas.

Compreende-se, neste contexto, que as interações mais naturalistas ocorram entre Íris, o pai e o irmão; enquanto o submundo de documentos, pastas e negócios escusos abrace o realismo fantástico. Marques possui um controle invejável de tons e ritmos, algo particularmente raro para um longa-metragem que ocupa extensos 140 minutos. Graças à montagem precisa de Marques e João Salaviza, nenhuma cena excessiva, nem arrastada demais. A Mensageira ocupa o tempo exato que lhe cabe.

É certo que, nestas conversas e provocações elegantes do universo jurídico, algumas falas possuem caráter mais explicativo, e incômodo, por romper com a premissa, muito bem estabelecida, de pessoas verossímeis em contextos absurdos. “Todo mundo cumpre ordens. Ninguém é responsável de nada”. “Alguma dúvida de que vocês fazem parte de uma organização criminosa?”. “O senhor nunca mais se casou. Nunca teve ninguém”, a filha explica ao próprio pai. Ora, ele não sabia disso? “Nosso povo é muito didático”, comenta a mãe de santo. De fato.

Mesmo assim, os eventuais excessos ou arestas não retiram o mérito de um projeto orgânico na reunião entre estética e narrativa, entre o real e o surreal. Muitos filmes que abraçam um preto e branco ostensivo correm o risco de chamar atenção excessiva às escolhas estéticas, enquanto forma de vaidade da direção e da fotografia — discussões semelhantes ocorreram no Olhar de Cinema a respeito de Retrato de um Certo Oriente. Neste caso, em contrapartida, atuações, sons, luzes e cores proferem um discurso único. Testemunhamos uma monstruosidade estranhamente familiar, ou ainda um “labirinto perigoso”, segundo uma fala.

O final pode despertar questionamentos. O cineasta se mostra um otimista, acreditando que a lei pode funcionar à perfeição e prender mesmo os mais poderosos mandantes do crime. Ironicamente, o drama passa 140 minutos criticando a inocência de Íris, apenas para demonstrar igual credulidade no desfecho. Incongruências à parte, o filme quer muito acreditar numa maneira de corrigir o sistema falho e colocar um fim à corrupção sistêmica — ainda que não saiba muito bem de que modo fazê-lo, nem política, nem artisticamente.

Pelo menos, sobressai no final a abertura a este terreno de grandes liberdades, em termos de construção metafórica e simbólica. O cinema brasileiro tem construído seus principais filmes, e mais potentes discursos políticos, através das ferramentas do terror e da fantasia. A melhor maneira de compreender nossa intricada realidade é justamente nos afastando dela.

A Mensageira (2024)
7
Nota 7/10

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