A Mensageira nos apresenta a um mundo estranho. Pela perspectiva do cineasta Cláudio Marques, a cidade de Salvador se tinge de um preto e branco bastante acinzentado (não há, propriamente falando, nenhum preto profundo nem branco absoluto nas cores). As ruas estão estranhamente vazias, distantes do furor turístico costumeiramente associado à capital baiana. As pessoas ocupam apartamentos silenciosos, vazios, pouco acolhedores.
Existe um caráter inóspito na ambientação, cuidadosamente orquestrada pelo diretor de fotografia Flávio Rebouças. A impressão inicial apenas se aprofunda: conforme a oficial de justiça Íris (Clara Paixão) descobre o submundo corrupto do sistema legal brasileiro, ela mergulha em cenários ainda mais surrealistas, inspirados em Franz Kafka e outros especialistas no absurdo do real. “Abra os olhos, Íris”, parecem reclamar o namorado, a mãe de santo, a colega de trabalho, e o próprio filme.
Isso porque a jovem acredita cegamente — o termo é irônico — na justiça. Cumpre mandatos e sentenças sem questionar a validade de tais julgamentos. “Eu apenas sigo ordens”, repete com certa insistência. Suas certezas começam a ruir diante do caso de um ativista pacífico (Hamilton Borges), que desaparece após uma condução à delegacia. Os superiores suplicam à heroína que esqueça o caso, siga adiante. Ela fez o seu trabalho, e ponto final. Entretanto, em suas investigações pessoais, descobre interesses políticos em provocar o sumiço de Anderson (nome que evoca, entre outros, o assassinato de Marielle Franco).
O longa-metragem se concentra na perda da inocência. A heroína desfaz a crença utópica numa justiça imparcial, confrontando-se ao racismo enquanto denominador das organizações sociais.
O longa-metragem se concentra, portanto, na perda da inocência. Esta premissa encontra seu nicho ideal nas personagens fictícias de crianças e adolescentes, descobrindo pela primeira vez o caráter amargo da vida adulta. Aqui, de certa maneira, Íris também amadurece. A heroína desfaz a crença utópica numa justiça imparcial, confrontando-se ao racismo enquanto denominador das organizações sociais. Portanto, o espectador é levado a se identificar com a mulher tão correta — incorruptível, nas palavras do personagem interpretado por Vladimir Brichta — quanto ingênua. O filme trata de lhe mostrar, por meio de uma violência simbólica, que tais idealizações não se sustentam num Brasil contemporâneo.
O preto e branco o distanciamento em relação à sociedade, assim como o formato da imagem, mais próximo do quadrado. A janela em 1 : 1,66 deixa os rostos e corpos espremidos no canto do enquadramento, desconfortáveis, deslocados. Como se estas perturbações não fossem o bastante, a narrativa passa a incluir pesadelos (as mãos batendo no carro, um encontro com o “diabo” digno de Fausto), e simbologias acerca da dificuldade de ver. Afinal, a protagonista se chama Íris, não consegue abrir os olhos à complexidade sociopolítica, e manifesta problemas na vista, que a levam a utilizar colírios constantemente.
Não se trata da metáfora mais sutil do mundo, é claro. Ela se torna ainda menos potente quando uma personagem a explica ao espectador. A direção demonstra uma mão pesada para a iconografia, sempre mastigada ao público — vide o quadro de Arthemis, transfigurada em deusa da justiça, e a atriz convertida em estátua, segurando a balança. Os significados são evidentes, e dispensáveis em meio à discussão complexa, e repleta de nuances, a respeito da ética e da moral.
O elenco ajuda a tornar este universo palatável, ainda que próximo de um mundo de sonhos. Clara Paixão e Evelin Buchegger estão ótimas ao manejarem os diálogos de maneira protocolar, monocórdica, entre a amizade, a provocação e a sedução. (Nunca se sabe ao certo se as personagens se amam ou odeiam — talvez os dois). O aspecto de transe das atuações conduz o filme ao teor simbólico e etéreo que almeja. Afinal, os personagens representam mais do que si próprios, constituindo funções sociais e analogias políticas.
Compreende-se, neste contexto, que as interações mais naturalistas ocorram entre Íris, o pai e o irmão; enquanto o submundo de documentos, pastas e negócios escusos abrace o realismo fantástico. Marques possui um controle invejável de tons e ritmos, algo particularmente raro para um longa-metragem que ocupa extensos 140 minutos. Graças à montagem precisa de Marques e João Salaviza, nenhuma cena excessiva, nem arrastada demais. A Mensageira ocupa o tempo exato que lhe cabe.
É certo que, nestas conversas e provocações elegantes do universo jurídico, algumas falas possuem caráter mais explicativo, e incômodo, por romper com a premissa, muito bem estabelecida, de pessoas verossímeis em contextos absurdos. “Todo mundo cumpre ordens. Ninguém é responsável de nada”. “Alguma dúvida de que vocês fazem parte de uma organização criminosa?”. “O senhor nunca mais se casou. Nunca teve ninguém”, a filha explica ao próprio pai. Ora, ele não sabia disso? “Nosso povo é muito didático”, comenta a mãe de santo. De fato.
Mesmo assim, os eventuais excessos ou arestas não retiram o mérito de um projeto orgânico na reunião entre estética e narrativa, entre o real e o surreal. Muitos filmes que abraçam um preto e branco ostensivo correm o risco de chamar atenção excessiva às escolhas estéticas, enquanto forma de vaidade da direção e da fotografia — discussões semelhantes ocorreram no Olhar de Cinema a respeito de Retrato de um Certo Oriente. Neste caso, em contrapartida, atuações, sons, luzes e cores proferem um discurso único. Testemunhamos uma monstruosidade estranhamente familiar, ou ainda um “labirinto perigoso”, segundo uma fala.
O final pode despertar questionamentos. O cineasta se mostra um otimista, acreditando que a lei pode funcionar à perfeição e prender mesmo os mais poderosos mandantes do crime. Ironicamente, o drama passa 140 minutos criticando a inocência de Íris, apenas para demonstrar igual credulidade no desfecho. Incongruências à parte, o filme quer muito acreditar numa maneira de corrigir o sistema falho e colocar um fim à corrupção sistêmica — ainda que não saiba muito bem de que modo fazê-lo, nem política, nem artisticamente.
Pelo menos, sobressai no final a abertura a este terreno de grandes liberdades, em termos de construção metafórica e simbólica. O cinema brasileiro tem construído seus principais filmes, e mais potentes discursos políticos, através das ferramentas do terror e da fantasia. A melhor maneira de compreender nossa intricada realidade é justamente nos afastando dela.