A Mensagem de Jequi pode ser descrito como um filme infantil de resistência. Em primeiro lugar, ele se impõe em nível político e socioambiental: a narrativa valoriza o contato com as águas e matas, alertando às crianças para se atentarem contra empresários que prometem melhorias milagrosas em troca de pequenos favores. Ao contrário de tantos projetos voltados às crianças urbanas, pensando a natureza enquanto abstração (algo distante que precisa ser preservado, sabe-se lá o porquê), o diretor Igor Amin defende que os pequenos literalmente mergulhem no rio, brinquem com barquinhos de madeira, gravetos, pedras, lama. O contato com estes elementos se torna prático e concreto.
Isso implica, em segundo lugar, na defesa de uma juventude analógica e proativa. Embora a trama se situe em tempos presentes, na Comunidade Quilombola Vila Nova, não há nenhum telefone celular, computador ou qualquer meio eletrônico à vista. Os brinquedos são criados pelos próprios familiares e suas crianças, a partir da criatividade e dos materiais à disposição. A brincadeira ocorre em partes externas, na rua, valorizando a intervenção com o meio — de onde decorrem as garrafas com mensagens, jogadas nas águas, os instrumentos musicais, e mesmo a reciclagem enquanto prática lúdica.
Consequentemente, em terceiro lugar, a obra se volta contra a aceleração pop-fragmentada da estética contemporânea, pensada para crianças de baixa concentração. A montagem trabalha com cenas dilatadas, contemplativas, enquanto a fotografia aposta em luz natural. Trata-se de um filme solar (não há noites aqui), onde cada personagem aparenta usar suas roupas habituais, frequentando os espaços aos quais está acostumado. Neste caso, é o cinema quem se adequa à realidade, ao invés de fazer com que o real se molde às vontades do cinema. Em diversos instantes (a escola, a brincadeira dos irmãos no quarto), a linguagem se aproxima da aparência documental.
O diretor segue coerente com sua visão de mundo e de cinema, em mais um trabalho solidamente pensado como leve antídoto à infância acelerada do século XXI.
Por isso, o resultado soa tão urgente quanto atemporal. O roteiro aborda a tragédia do rompimento das barragens em Minas Gerais, enquanto contesta os empreendimentos predatórios em terras demarcadas, e busca uma aproximação humana e empática entre povos lusófonos — a garrafa jogada no Rio Jequitinhonha viaja, em chave fantástica, até Portugal e Moçambique. O texto se coloca ao lado dos povos originários e da resistência quilombola. Ao mesmo tempo, tanto a luta quanto o posicionamento humanista poderiam corresponder a qualquer período e governo.
É fácil se identificar com Jequi (diminutivo de Jequitinhonha), o garotinho que narra a história, jamais idealizado ou romantizado pela trama. Ao mesmo tempo em que se posiciona pela manutenção de sua cultura (possuindo, portanto, um senso de finalidade), ele se desloca pelos rios a esmo, aproveitando a infância. Não existe um conflito propriamente dito em A Mensagem de Jequi: o menino solta a garrafa e o barco pelas águas, partindo então para acompanhá-los, onde quer que se desloquem. Trata-se de um recurso simples e eficaz para expandir a curiosidade do personagem rumo à descoberta de outros modos de vida.
Entretanto, nada realmente ameaça o menino, que tampouco possui objetivos inalcançáveis. O recorte do roteiro se aproxima da vida cotidiana de Jequi, como se a câmera tivesse escolhido um dia qualquer de sua vivência. Raros filmes voltados às crianças se privam da oportunidade de escolher um grande problema a resolver, ou um momento de profundo aprendizado e transformação. Ora, neste caso, o menino tem mais a ensinar aos pais e ao espectador do que aprender com quem quer que seja. Evita-se o olhar paternalista e didático, acostumado a situar a criança na posição de quem precisa escutar. Para Amin, são os adultos que têm a aprender com seus pequenos.
O autor possui nítida intimidade com este universo, e também com o trato do elenco infantil. As crianças estão confortáveis, desenvoltas (vide a dança de Kaique Santos Silva no desfecho), porque efetuam atividades simples em frente às câmeras. Nunca recebem diálogos improváveis, nem cenas de forte intensidade emocional. Em frente à câmera, ganham a oportunidade de serem apenas crianças — a fotografia enxerga magia e valor em seus comportamentos habituais. Este é mais um acerto da obra, que não utiliza os pequenos enquanto exemplos de uma causa. Eles são somente porta-vozes de sua própria subjetividade.
Apesar desta bela complexidade, alguns fatores prejudicam os voos de A Mensagem de Jequi. O maior deles reside no segmento português, que destoa por completo de tudo o que vimos antes, como se estivessem nos exibindo, por engano, o rolo de um projeto diferente. O problema não seria de ordem narrativa — a viagem a outros países decorre de um movimento natural do herói —, mas estética. De repente, entra em cena uma imagem de textura digital de baixa qualidade, extremamente nítida e contrastada, com as cores saturadas.
Perde-se toda delicadeza e precisão das imagens até então, num trecho apressado, como se tivesse sido filmado da maneira possível. O retorno do roteiro a Moçambique recoloca o longa-metragem nos eixos, trazendo imagens belíssimas, e coerentes com a filmagem majoritária no Vale do Jequitinhonha. Entretanto, este salto geográfico, estético e temporal na Europa (a anedota sobre 1411) rompe com a fluidez impecável que se desenvolvia. Curiosa escolha, da direção e da montagem, de manter este trecho sem acreditar que pudesse provocar um ruído na experiência.
Além disso, há pequenos problemas com alguns letreiros, e com o desenvolvimento dos personagens adultos, abandonados de modo abrupto pelo olhar infantil. A cena final também se arrasta bastante, antes de efetivamente interromper a aventura — dando a impressão de que os artistas não estavam dispostos a se despedir das crianças e da trama. Para o espectador, o instante mágico da brincadeira na água se alonga tanto que se dilui seu encantamento. Enquanto isso, aproxima-se do videoclipe, junto à música em off.
Felizmente, estes são detalhes para um longa-metragem muito bem-sucedido em sua poesia delicada (a comparação das ilhas com “peixes de areia”; a tempestade representando o choro da garotinha; a bela valorização do artesanato local). Amin consegue trabalhar inúmeros temas sem soar pedagógico, nem moralista. Trata as crianças e seus familiares com respeito, atenção, permitindo o espaço da brincadeira enquanto aposta em sua capacidade de compreender temas complexos.
O diretor tem desenvolvido um trabalho infantojuvenil raríssimo no cinema brasileiro (este live action independente, naturalista, lúdico e semidocumental). Ele segue coerente com sua visão de mundo e de cinema, em mais um trabalho solidamente pensado como leve antídoto à infância acelerada do século XXI.