A Princesa da Yakuza (2021)

Cine pastiche

título original (ano)
Yakuza Princess (2021)
país
Brasil
gênero
Ação, Crime, Suspense
duração
111 minutos
direção
Vicente Amorim
Elenco
Masumi, Jonathan Rhys Meyers, Tsuyoshi Ihara, Eijiro Ozaki, Kenny Leu, Toshiji Takeshima, Mariko Takai, Nicolas Trevijano, Charles Paraventi, André Ramiro
visto em
Netflix

A Princesa da Yakuza (2021) não aborda o Japão, mas um recorte muito específico da cultura japonesa presente no imaginário coletivo da ocidentalidade. Trata-se do país repleto de mafiosos que cometem suicídio em nome da honra, duelam com espadas poderosíssimas, pertencem a clãs perigosos e possuem os corpos cobertos de tatuagem. Para provar sua lealdade ao patrão, estão dispostos a cortar um dedo. Chega-se ao ponto onde existe apenas esta representação exagerada no horizonte: as pessoas são soturnas, com expressões de  teor grave e torturado. Não há um único japonês, ou descendente do mesmo, que não lute, pertença a uma gangue ou venda quinquilharias na rua.

O longa-metragem tampouco aborda o bairro da Liberdade, em São Paulo, onde existe, de acordo com o letreiro, “a maior comunidade japonesa do mundo”. Ora, esta parte do cenário paulistano adquire uma atmosfera de marginalidade sedutora e multicolorida, repleta de bares enfumaçados, lojinhas de vendedores ambulantes e restaurantes de macarrão. Parte-se de um karaokê rosa-neon às salas ruas azuis-neon e vielas verde-neon onde os passantes correm perigo ou topam com um desconhecido que lhes abre uma porta oculta e diz: “Atalho”.

Estranhamente, o projeto nem sequer ostenta uma vontade particular de se inserir num cinema brasileiro, no sentido de ilustrar o país com sua cultura, suas especificidades, idiossincrasias e histórias. Neste estranho país onde se fala inglês, impera apenas a marginalidade sombria e criminosa, sem alusão às comunidades que comporiam o centro para a citada margem. Seguimos a trajetória de uma mulher japonesa, Akemi (Masumi) e um tipo anglo-saxão amnésico (Jonathan Rhys Meyers), perambulando pela sociedade desprovida de instituições (polícia, escola, igreja, prefeitura, médico). O Brasil se limita a um cenário embelezado, pintado e decorado até perder sua identidade.

A propósito dos ornamentos, é evidente o interesse do diretor Vicente Amorim e do diretor de fotografia Gustavo Habda em criar a obra mais estilizada possível. Em provável referência à graphic novel de origem, investem num universo onde absolutamente todas as sequências serão multicoloridas, em neon, com contraluzes fortes. Despreza-se o naturalismo por completo ,em prol de uma imersão na matança-espetáculo, onde as gotas de sangue espirram na tela e os efeitos sonoros sugerem vísceras se dilacerando. Fora da janela, no apartamento da garota, há estranhas sombras (multicoloridas, claro) em forma abstrata. 

O texto reúne praticamente todas as lições do que não fazer num roteiro cinematográfico, servindo de belo contra-exemplo aos estudiosos do tema.

Os tiques, efeitos e intervenções de pós-produção se tornam os verdadeiros protagonistas. É difícil prestar atenção em qualquer outra coisa, acrescidas de cenas anguladas, e decoradas por farta quantidade de sangue, como no cinema de horror. O banho de luzes artificiais é tão sufocante que nivela os ambientes rumo à indistinção: seja o Japão azul de 20 anos atrás ou a Liberdade rosa de nossos dias, seja em internas ou externas, de dia ou de noite, os espaços parecem os mesmos. Os personagens andam e correm, mas parecem jamais sair dos palcos idênticos. O mundo se transforma num cenário cujos holofotes trocam suas gelatinas sem parar.

Já o conteúdo humano se torna secundário, mero enfeite para o dispositivo cênico. Ninguém possui mínimo desenvolvimento psicológico nem ambições para o futuro, restando na posição de símbolos de um estereótipo da alteridade: há a garota japonesa de aparência singela, porém letal quando encosta numa espada; e o sujeito que desperta no hospital sem conhecer sua identidade, então para diante do reflexo do espelho e indaga: “Quem é você?”. O pobre rapaz se arrasta de uma sequência à outra ignorando os motivos desta andança, já a guerreira investiga o passado familiar que nunca tinha lhe interessado muito até então. Ambos se deslocam pelo imperativo do movimento, porque isso significa ação e dinamismo aos olhos dos criadores. No entanto, giram em falso do início ao fim.

O roteiro condensa as principais fraquezas do filme, chamando tamanha atenção a si próprio que dispensa a inexperiência da cantora Masumi no papel principal, e o trabalho ingrato de Jonathan Rhys Meyers, condicionado a arregalar os olhos feito um zumbi e piscar o mínimo possível. O texto reúne praticamente todas as lições do que não fazer num roteiro cinematográfico, servindo de belo contra-exemplo aos estudiosos do tema. Por exemplo: 1. Evite diálogos onde um personagem transmita ao outro informações de que ambos dispõem, apenas para alertar o público. Aqui, o protetor de Akemi se vira e avisa à aprendiz: “Quando seu pai te trouxe para mim, você tinha apenas seis anos de idade”. A jovem adulta se lembra perfeitamente disso, logicamente. Adiante, ela comunica ao pai morto que está completando 21 anos, porque os autores não encontraram outra maneira de alertar o espectador deste fato.

2. Fuja de frases de efeito desgastadas, exceto quanto utilizadas para finalidade cômica, paródica (algo que falta brutalmente ao filme solene). Os sujeitos malvados desta aventura se comunicam através de pérolas como “O mundo exterior não cabe no dojo”, “Você e sua espada precisam se tornar uma só”, ou ainda “Baixa as calças que eu vou te machucar por dentro”. Algumas cenas depois, o líder insano da gangue “chupa” o cano do revólver como faria a um falo. A representação de erotismo e pulsão de morte beira o ridículo involuntário.

3. Não ofereça soluções mágicas nem traquitanas abruptas para solucionar artificialmente conflitos em andamento. Aqui, coadjuvantes retiram imediatamente da bolsa um pedacinho de papel guardado há décadas, esperando o momento oportuno de ser entregue; a espada surge quando convém à narrativa; e a “princesa” do título encontra todas as informações de que necessita numa gaveta esperando por ela. O sujeito-fantasma foge do hospital com facilidade absurda, e Akemi liberta-se de enrascadas graças à chegada inesperada de homens dispostos a ajudá-la. Enquanto eles oferecem proteção, as mulheres fornecem conselhos e preparam banhos quentes.

Ao final, o resultado lembra menos um exercício de gênero do que um pastiche do cinema de ação. Os tipos malvados fazem suas refeições diante de uma sala de tortura, cheiram frutas enquanto efetuam revelações importantíssimas e retiram balas da perna com a ponta de uma faca, sem reclamar. Apesar da força da mulher enquanto protagonista, A Princesa da Yakuza constitui uma ode à imagem cristalizada da masculinidade bruta, resistente e corpórea, onde a ação se torna mais pura e visceral quando dispensa a reflexão — por isso Shiro não possui memória; nem os combatentes questionam a hierarquia.

O projeto busca referências em inúmeros filmes mais sofisticados sobre a Yakuza, porém tornados acessíveis pela dinâmica brutamontes e piscante. A carnificina se reveste de uma aparência brilhosa, procurando ocultar a vacuidade do conteúdo e a inércia da narrativa enquanto forma de cinema ou proposta de visão de mundo. Vale lembrar que o cinema de ação não precisa ser acerebrado, nem escapista por excelência: os melhores diretores do cinema utilizaram os preceitos da máfia para criticar a ideia de uma sociedade falida, de instituições corrompidas, de famílias perversas. Aqui, em contrapartida, a sociedade nunca existiu de fato. 

A Princesa da Yakuza (2021)
2
Nota 2/10

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