Muito tempo atrás, Canuto morreu. Os vizinhos e familiares desta comunidade Mbyá-Guarani conhecem bem a história do homem que se transformou progressivamente numa onça. Passava as noites na floresta, longe dos familiares. Conversava com poucas pessoas, andava em quatro patas, manifestava comportamento agressivo. Até o dia em que manifestou no corpo as manchas características do animal. Não havia mais solução. Precisou ser abatido e enterrado num local indefinido.
Esta figura constitui o personagem principal do projeto, ainda que jamais apareça em imagens. Afinal, os habitantes tiram poucas fotos, e o sujeito não tinha apreço por sua fotografia em registros alheios. Fala-se o tempo inteiro em Canuto, em sua importância, seu ciúme doentio pela esposa, seu comportamento estranho. Ele teria experimentado carne humana, teria ficado duas semanas sem tomar banho, teria evitado o contato humano… A percepção a respeito do sujeito mistura fatos e lendas.
O principal objeto de estudo dos cineastas Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho reside nesta história, desprovida de material de arquivo. Ora, como filmar aquilo que nunca foi documentado? Eles decidem reencenar a história de Canuto com a ajuda dos habitantes deste povoado. Nasce então o filme dentro do filme. A Transformação de Canuto se converte no documentário de uma ficção, ou no making of a respeito de um filme que nunca veremos.
O cinema se torna uma ferramenta política explícita, sem a necessidade de gritar mazelas, nem imprimir tom de urgência. Através da construção de imagens, ergue uma estrutura de memória e documento.
Os criadores se interessam pelo processo, em detrimento do resultado. Como os povos originários enxergam o mundo e transpõem suas crenças em imagens? É fundamental, neste caso, que a perspectiva parta dos próprios indígenas, controlando o ponto de vista e as ferramentas do audiovisual. Ariel Ortega possui experiência com o cinema há mais de uma década, enquanto Ernesto de Carvalho, antropólogo branco, constitui a segunda metade da dupla voluntariamente composta por origens distintos.
Este último está mais próximo de interpretar um personagem, oferecendo fricções capazes de representar o olhar não-indígena (em consequência, aquele da maioria dos espectadores) face à cultura alheia. Ernesto solicita a exumação do cadáver de Canuto, para atestar os restos mortais da onça. Investiga o local específico do enterro, e as circunstâncias exatas de tal mudança física. Nenhuma destas vontades soa possível, ou importante, aos guaranis. Conforme explicam ao homem de fora, não se mexe com os mortos, nem se atrapalha o descanso de quem já partiu. Jamais retirariam o cadáver da terra. Vence a premissa dos moradores locais.
Logo, a realização do filme e a subsistência dos povos originários se desenvolvem em paralelo. A montagem de Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida sugere que, conforme se ergue a história de Canuto, constroem-se as bases para a resistência destes habitantes. O cinema se torna uma ferramenta política explícita, sem a necessidade de gritar mazelas, nem imprimir tom de urgência. No entanto, através da construção de imagens, ergue-se uma estrutura de memória e documento.
Pouco importa se a história de Canuto ocorreu desta maneira ou não. Os moradores o erguem à condição de símbolo, ilustrando a crença na possibilidade da transformação de um ser humano em bicho. Materializa-se a fé, a visão de mundo onde natureza e humano constituem um elemento indissociável. Os guaranis fazem audiovisual para o conhecimento dos brancos, mas também para a memória dos próprios indígenas, que podem enxergar nos registros um outro de si mesmos. Deixam de constituir a alteridade brasileira para constituir o eu.
Os ensaios, testes e filmagens a respeito do homem-onça estão repletos de instantes preciosos de metacinema. Primeiro, a seleção da criança capaz de interpretar Canuto ocorre por meio de uma ferramenta convencional: pede-se que os meninos encarem a câmera com o furor do sujeito em vias de animalização. Alguns garotos o fazem, sem convicção — até chegar um menino de olhar hipnótico, comprometido, possuído pelo papel. A procura se encerra: não é preciso olhar mais ninguém. Há certa magia (da atuação, da fisionomia, da estética) ocorrendo ao vivo, diante dos olhos do espectador.
Adiante, Ariel, junto aos vizinhos e amigos, decide a maneira como Canuto deveria ser dirigido e construído. Seria preciso passar dias na floresta, sem banho? Experimentar carne crua, para entender como o falecido se sentia? Como se colocar no papel de outra pessoa? Em última instância, o projeto questiona a natureza representativa das imagens, como se buscasse os limites de sua empreitada. O filme dentro do filme constitui um gesto de autossabotagem, com intuito de descobrir até onde podem ir com a ficção inspirada em fatos, antes de serem vencidos pelo abismo separando o real de sua representação. Do que o cinema é capaz?
Tais questionamentos se alternam com a vivência guarani, dotada de seus próprios protagonistas — caso do menino órfão, criado pela senhora que lhe ensina a construir armadilhas para pássaros. A vontade de capturar a natureza tal qual (para consumo na alimentação, ou para recriação da história deste povo) aproxima estas duas partes, que correm alternadamente. Em alguns momentos, ficção e documentário se borram: a expressiva mãe de duas crianças pequenas está atuando ou cuidando de fato dos filhos? A briga com o marido ocorre na realidade, ou na perspectiva de Canuto? Importaria distinguir as duas instâncias, afinal?
Por fim, a recriação deste episódio da vida guarani constitui um ponto de partida para que os moradores se confrontem aos desafios e potencialidades do audiovisual. Os vizinhos lançam perguntas muito pertinentes: por que esta pessoa, e não outra, deveria interpretar o herói? Seria falsidade pegar o animal morto por um caçador e fingir que se tratava da caça de Canuto? As dúvidas exemplificam a relação de espectadores e críticos, questionando o fazer cinematográfico e também nossa ética diante das imagens.
Uma das belas metáforas deste projeto decorre de uma construção em madeira, abandonada no meio da aldeia. Foi criada por um arquiteto branco e famoso, vencedor de um concurso. No entanto, o sujeito jamais perguntou aos indígenas sobre as especificidades deste local destinado ao culto. Resultado: a construção não servia aos propósitos dos habitantes. Soa como uma intrusa, um corpo estranho no meio do mato.
Depois de muita deliberação, os guaranis decidem que seria melhor derrubar o espaço e utilizar a madeira para projetos seus. O cinema filmado pelos povos originários, a respeito de temas que lhes dizem respeito, representa um gesto análogo à destruição do monumento branco, para ser então ressignificado pela perspectiva de quem realmente vive a cultura retratada. Nas palavras pós-modernas, um empoderamento através da arte.