A Transformação de Canuto (2023)

O homem que virou onça

título original (ano)
A Transformação de Canuto (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário, Drama
duração
130 minutos
direção
Ariel Kuaray Ortega, Ernesto de Carvalho
elenco
Álvaro Benitez, Thiny Ramirez, Ariel Kuaray Ortega
visto em
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2024)

Muito tempo atrás, Canuto morreu. Os vizinhos e familiares desta comunidade Mbyá-Guarani conhecem bem a história do homem que se transformou progressivamente numa onça. Passava as noites na floresta, longe dos familiares. Conversava com poucas pessoas, andava em quatro patas, manifestava comportamento agressivo. Até o dia em que manifestou no corpo as manchas características do animal. Não havia mais solução. Precisou ser abatido e enterrado num local indefinido.

Esta figura constitui o personagem principal do projeto, ainda que jamais apareça em imagens. Afinal, os habitantes tiram poucas fotos, e o sujeito não tinha apreço por sua fotografia em registros alheios. Fala-se o tempo inteiro em Canuto, em sua importância, seu ciúme doentio pela esposa, seu comportamento estranho. Ele teria experimentado carne humana, teria ficado duas semanas sem tomar banho, teria evitado o contato humano… A percepção a respeito do sujeito mistura fatos e lendas.

O principal objeto de estudo dos cineastas Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho reside nesta história, desprovida de material de arquivo. Ora, como filmar aquilo que nunca foi documentado? Eles decidem reencenar a história de Canuto com a ajuda dos habitantes deste povoado. Nasce então o filme dentro do filme. A Transformação de Canuto se converte no documentário de uma ficção, ou no making of a respeito de um filme que nunca veremos. 

O cinema se torna uma ferramenta política explícita, sem a necessidade de gritar mazelas, nem imprimir tom de urgência. Através da construção de imagens, ergue uma estrutura de memória e documento. 

Os criadores se interessam pelo processo, em detrimento do resultado. Como os povos originários enxergam o mundo e transpõem suas crenças em imagens? É fundamental, neste caso, que a perspectiva parta dos próprios indígenas, controlando o ponto de vista e as ferramentas do audiovisual. Ariel Ortega possui experiência com o cinema há mais de uma década, enquanto Ernesto de Carvalho, antropólogo branco, constitui a segunda metade da dupla voluntariamente composta por origens distintos.

Este último está mais próximo de interpretar um personagem, oferecendo fricções capazes de representar o olhar não-indígena (em consequência, aquele da maioria dos espectadores) face à cultura alheia. Ernesto solicita a exumação do cadáver de Canuto, para atestar os restos mortais da onça. Investiga o local específico do enterro, e as circunstâncias exatas de tal mudança física. Nenhuma destas vontades soa possível, ou importante, aos guaranis. Conforme explicam ao homem de fora, não se mexe com os mortos, nem se atrapalha o descanso de quem já partiu. Jamais retirariam o cadáver da terra. Vence a premissa dos moradores locais.

Logo, a realização do filme e a subsistência dos povos originários se desenvolvem em paralelo. A montagem de Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida sugere que, conforme se ergue a história de Canuto, constroem-se as bases para a resistência destes habitantes. O cinema se torna uma ferramenta política explícita, sem a necessidade de gritar mazelas, nem imprimir tom de urgência. No entanto, através da construção de imagens, ergue-se uma estrutura de memória e documento. 

Pouco importa se a história de Canuto ocorreu desta maneira ou não. Os moradores o erguem à condição de símbolo, ilustrando a crença na possibilidade da transformação de um ser humano em bicho. Materializa-se a fé, a visão de mundo onde natureza e humano constituem um elemento indissociável. Os guaranis fazem audiovisual para o conhecimento dos brancos, mas também para a memória dos próprios indígenas, que podem enxergar nos registros um outro de si mesmos. Deixam de constituir a alteridade brasileira para constituir o eu.

Os ensaios, testes e filmagens a respeito do homem-onça estão repletos de instantes preciosos de metacinema. Primeiro, a seleção da criança capaz de interpretar Canuto ocorre por meio de uma ferramenta convencional: pede-se que os meninos encarem a câmera com o furor do sujeito em vias de animalização. Alguns garotos o fazem, sem convicção — até chegar um menino de olhar hipnótico, comprometido, possuído pelo papel. A procura se encerra: não é preciso olhar mais ninguém. Há certa magia (da atuação, da fisionomia, da estética) ocorrendo ao vivo, diante dos olhos do espectador.

Adiante, Ariel, junto aos vizinhos e amigos, decide a maneira como Canuto deveria ser dirigido e construído. Seria preciso passar dias na floresta, sem banho? Experimentar carne crua, para entender como o falecido se sentia? Como se colocar no papel de outra pessoa? Em última instância, o projeto questiona a natureza representativa das imagens, como se buscasse os limites de sua empreitada. O filme dentro do filme constitui um gesto de autossabotagem, com intuito de descobrir até onde podem ir com a ficção inspirada em fatos, antes de serem vencidos pelo abismo separando o real de sua representação. Do que o cinema é capaz?

Tais questionamentos se alternam com a vivência guarani, dotada de seus próprios protagonistas — caso do menino órfão, criado pela senhora que lhe ensina a construir armadilhas para pássaros. A vontade de capturar a natureza tal qual (para consumo na alimentação, ou para recriação da história deste povo) aproxima estas duas partes, que correm alternadamente. Em alguns momentos, ficção e documentário se borram: a expressiva mãe de duas crianças pequenas está atuando ou cuidando de fato dos filhos? A briga com o marido ocorre na realidade, ou na perspectiva de Canuto? Importaria distinguir as duas instâncias, afinal?

Por fim, a recriação deste episódio da vida guarani constitui um ponto de partida para que os moradores se confrontem aos desafios e potencialidades do audiovisual. Os vizinhos lançam perguntas muito pertinentes: por que esta pessoa, e não outra, deveria interpretar o herói? Seria falsidade pegar o animal morto por um caçador e fingir que se tratava da caça de Canuto? As dúvidas exemplificam a relação de espectadores e críticos, questionando o fazer cinematográfico e também nossa ética diante das imagens.

Uma das belas metáforas deste projeto decorre de uma construção em madeira, abandonada no meio da aldeia. Foi criada por um arquiteto branco e famoso, vencedor de um concurso. No entanto, o sujeito jamais perguntou aos indígenas sobre as especificidades deste local destinado ao culto. Resultado: a construção não servia aos propósitos dos habitantes. Soa como uma intrusa, um corpo estranho no meio do mato.

Depois de muita deliberação, os guaranis decidem que seria melhor derrubar o espaço e utilizar a madeira para projetos seus. O cinema filmado pelos povos originários, a respeito de temas que lhes dizem respeito, representa um gesto análogo à destruição do monumento branco, para ser então ressignificado pela perspectiva de quem realmente vive a cultura retratada. Nas palavras pós-modernas, um empoderamento através da arte.

A Transformação de Canuto (2023)
9
Nota 9/10

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