Iris (Isabelle Huppert) dá uma aula de francês, embora converse apenas em inglês com sua aluna. Ela não tem nenhuma formação em ensino, e não parece interessada no que a jovem tenha a dizer. Quando a garota coreana oferece para mostrar suas habilidades ao piano, Iris consente em escutá-la. Mas assim que a música começa, a professora sai do cômodo.
Há algo muito estranho nesta personagem, concebida por Hong Sang-soo exatamente para constituir um elemento dissonante na polida e regrada sociedade coreana. Ninguém sabe de onde vem a francesa, seus objetivos no país, sua profissão. No entanto, parecem perplexos diante da mulher, propensos a acatar cada um de seus pedidos, a aceitá-la como ensinante, embora a própria confesse sua inexperiência e falta de técnica. O cineasta acredita em alguma magia exercida por Isabelle Huppert sobre o mundo ao redor.
Logo, o primeiro prazer de A Traveler’s Needs consiste em se deparar com a atriz veterana interpretando uma figura meio grosseira, que morde os talheres ao comer, além de batê-los no fundo do prato. Ela anda de maneira desleixada pela rua; flerta com a maioria dos personagens masculinos em cena (assim que as esposas saem para buscar uma bebida na cozinha). A intérprete se presta ao dispositivo sem nenhum trabalho de composição particularmente desenvolvido, apenas um faz de conta, uma disponibilidade à brincadeira.
Song-soo se converte no ilusionista que, ao final de um número, faz uma pausa para explicar ao público o segredo de sua ilusão.
Por isso mesmo, os flertes soam descarados, e as cenas tocando flauta (completamente desafinada) na floresta remetem às fábulas infantis a respeito de sereias atraindo humanos, ou bruxas seduzindo criancinhas. O diretor não leva esta personagem muito a sério, e tampouco demonstra interesse em conhecer seu passado, seus objetivos, etc. Entretanto, assume que as incongruências não seriam um defeito, mas o propósito daquela figura que se desloca a esmo e, de repente, desaparece de um parque. Talvez Iris nunca tenha existido de fato.
As interações com alunos e amigos são igualmente desvestidas de qualquer seriedade, a partir do momento em que os diálogos começam a se repetir. A “professora” pergunta à aluna como ela se sente tocando música, e diante da resposta simples (“Feliz”), questiona: “E o que mais você sente?”. O diálogo patético deixa todos desconfortáveis a princípio, até ser repetido, praticamente palavra por palavra, com a aluna seguinte, que lhe toca violão. Esta última também se sente feliz, mas um pouco irritada com seu nível de desempenho com o instrumento.
O dispositivo interessa por revelar ao espectador a construção rigidamente roteirizadas das cenas que sustentavam a aparência de improviso. Inicialmente, tamanha banalidade das falas sugeria mero estímulo do diretor para que conversassem a respeito de qualquer coisa, até percebermos que as pausas e gaguejadas foram minuciosamente concebidas durante a escritura. O cinema se faz metalinguístico, revelando seu funcionamento e seus truques. Song-soo se converte no ilusionista que, ao final de um número, faz uma pausa para explicar ao público o segredo de sua ilusão.
Infelizmente, o procedimento não se desenvolve por muito tempo. Passadas duas cenas praticamente idênticas em texto, o criador confronta Iris a um amigo, e depois acompanha as cobranças deste pela mãe. Alguns diálogos até se conectam (a discussão a respeito de poetas mortos cedo demais), no entanto, o jogo de cena se interrompe enquanto tal. Resta o passeio de uma figura misteriosa, cujo mistério é acentuado e sublinhado pelo diretor ao limite da comicidade. Alguns diretores deixam de desenvolver seus protagonistas por problemas de roteiro (mais concentrados na ação, ou em outros elementos), porém outros autores fazem desta lacuna um espetáculo em si.
Sang-soo passa então a citar a si mesmo, de maneira mais ou menos explícita. O zoom-in agressivo no gato de A Mulher que Fugiu (2020) se converte no zoom em um cachorro, com efeito de surpresa reduzido desta vez. O destino entregue a Iris na cena do parque consiste na reprodução literal do conceito da mulher que fugiu; e o famoso saquê é substituído desta vez por makgeolli, uma bebida alcoólica a base de arroz. O diretor brinca de alterar uma ou outra peça de seu castelo autoral, para examinar de que maneira a arquitetura se transforma. Assemelha-se a um cientista, examinando a própria filmografia, testando sua abordagem, item por item.
De certo modo, o cineasta tem efetuado este procedimento nos últimos anos. Num ritmo impressionante de três filmes ao ano, em média, diverte-se em escolher um pequeno elemento de dissonância para analisar em cada projeto: a multiplicação dos zoom-ins num caso, o desfoque em In Water, e a repetição do texto aqui. Trata-se de uma iniciativa interessante, ainda que pouco radical, e com risco de provocar impressão de desgaste iminente.
Mesmo assim, poucos criadores conseguem efetuar obras de maneira tão rápida e barata, acumulando todas as funções disponíveis. Sang-soo assina a direção, roteiro, produção, direção de fotografia, edição e trilha sonora. Além disso, pode se dar ao luxo de contar com um elenco do nível de Isabelle Huppert e Kwon Haehyo. Ele desenvolveu um modo de criação profundamente eficaz para os padrões da indústria e do sistema autoral, que lhe corresponde com um acolhimento incondicional (entre Cannes, Berlim e Veneza, cada um tem o direito ao “seu Hong Sang-soo” diferente, no mesmo ano). Não é pouca coisa.